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Resumo:
Trata-se de uma compilação sintética e crítica das doutrinas modernas sobre o tema a Responsabilidade Civil através do prisma civil-constitucional voltada aos que pretendem iniciar os estudos no assunto.
Texto enviado ao JurisWay em 06/04/2011.
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1 INTRODUÇÃO
A complexidade da sociedade pós-moderna, tecnológica e globalizada, impôs profundas e vastas mudanças na Responsabilidade Civil quando levou aos tribunais um sem-número de questões completamente desconhecidas às eras anteriores. Foi de tal forma grave a evolução que aquele que pretender estudar o instituto tão só pelo ângulo do direito das obrigações, como se fazia, será frustrado, acreditando estar mesmo diante de um ramo completamente novo. A responsabilidade civil modificou-se tanto que o estudioso dos manuais mais egrégios tenderá a buscar outro nome para o estágio atual da ciência.
No entanto, as mudanças mais relevantes não se operaram nas normas, mas nas formas de interpretá-las e aplicá-las e principalmente, nos anseios sociais levados aos tribunais. Foi a jurisprudência que mais inovou neste ramo do Direito, até porque os grandes motivadores da evolução da responsabilidade civil, como se disse, foram os casos práticos e não decisões políticas. A releitura das normas trouxe soluções novas e complexas para litígios cada vez mais perplexos. Assim, de hard case em hard case construiu-se uma ciência “nova” com o mesmo nome: responsabilidade civil.
Indenizações punitivas? Danos morais em direito de família? Danos coletivos? Danos ambientais e teoria do risco absoluto? Limites da responsabilidade estatal? Direito médico? Seguros obrigatórios? Previdência social? Prevenção contra lesões? Diluição dos danos? Esses são alguns problemas que o operador da responsabilidade civil só poderá resolver se atento aos novos contornos desta ciência. Eis a necessidade de se realizar um novo estudo, mais sistemático, mais social e preocupado com a dignidade da pessoa humana, um estudo constitucionalizado da responsabilidade civil.
Aqui não se pretende esgotar a responsabilidade civil-constitucional, mas apenas oferecer um singelo subsídio para quem pretenda aprofundar-se nos estudos. Uma espécie de roteiro, com a apresentação do principais conceitos e bibliografia.
Para tanto, primeiro será realizado uma breve excursão sobre a constitucionalização do direito civil. Logo em seguida empreender-se uma breve análise histórica das ideologias que vieram formando a responsabilidade civil ao longo dos tempos, sem no entanto prestar acuro a ordem cronológica, o que se buscará mesmo é demonstrar a legitimidade do atual estágio da ciência. Por fim, atentaremos aos conceitos atuais dos pressupostos da responsabilidade civil: culpa, dano e nexo causal. Daí nao passará, mesmo reconhecendo que o tema é muito mais extenso.
Inicia-se a jornada. O estudante que pretende segui-la, verá, não há fim, e cada chegada indicará novos destinos.
Aparentemente a precariedade do codicista frente a problemática social contemporânea fez a doutrina mais atenta deitar fora, de uma vez por todas, o positivismo. No Brasil, como na maioria dos países legalistas, a via de ligação entre o Direito e a vida foi a abertura do ordenamento jurídico aos princípios, às cláusulas gerais, ao diálogo das fontes e, principalmente, à constitucionalização do direito. Ter na Constituição o centro unificador do ordenamento jurídico fazendo incidir suas normas e seus valores direta ou indiretamente sobre o direito privado transformou-se no método de criação de um Direito Civil legítimo, atual, eficaz, verdadeiro e consentâneo com os problemas sociais que se pretende mitigar.
Pierlingieri, um dos principais responsáveis pela propagação do direito civil constitucional, resumiu com primazia a que se propõe o direito civil-constitucional da seguinte forma:
Para o civilista apresenta-se um amplo e sugestivo programa de investigação que se proponha à atuação de objetivos qualificados: individuar um sistema do direito civil mais harmonizado aos princípios fundamentais e, em especial, às necessidades existenciais da pessoa; redefinir o fundamento e a extensão dos institutos jurídicos e, principalmente, daqueles civilísticos, evidenciando os seus perfis funcionais, numa tentativa de revitalização de cada normativa à luz de um renovado juízo de valor (giudizio di meritevolezza); verificar e adaptar as técnicas e as noções tradicionais (da situação subjetiva à relação jurídica, da capacidade de exercício à legitimação, etc.), em um esforço de modernização dos instrumentos e, em especial, da teoria da interpretação. (2007, p. 12)
Ao propor ser o Direito Civil servo da Constituição Federal, pugna-se por uma direito privado preocupado com os direitos fundamentais do indivíduo, mas também com a funcionalização social de cada interesse jurídico; direciona a atividade dos brasileiros na defesa da dignidade humana e na prevalência dos direitos humanos, mas também, no desenvolvimento nacional, na redução de desigualdades, na erradicação da pobreza e da marginalização, e na construção de uma sociedade justa, livre solidária e plural:
Assim, deve o direito civil contemporâneo, com efeito, ser concebido como serviço da vida, não para repor em cena o individualismo do século passado, mas para se afastar do tecnicismo e do neutralismo, aproximando-se da pessoa humana e suas expectativas, vinculadas à um realidade histórica concreta de seu tempo. (LOMEU. 2008. p.13)
Uma vez que Código Civil de 2002 foi elaborado sob o ranço do positivismo/individualista, aplicar suas normas sem limitá-las ou interpretá-las de acordo com a Constituição Federal é, hoje, produzir um direito sem legitimidade e inócuo.
Em nossas terras, o direito civil-constitucional tem se propagado progressivamente, principalmente pelos estudos dos civilistas, como reconhecem os constitucionalistas Barroso (2009a) e Sarmento (2010).
Tepedino (2008), Moraes (2010), Fachin (2008) e Lôbo (2010) são civilistas brasileiros de grande importância para a constitucionalização do Direito.
As facetas dessa metodologia de realização do Direito são variadas e complexas, tanto quanto os problemas que se pretende resolver. Por esta razão torna-se indesejado o aprofundamento deste rico tema aqui. Mas fique claro, a constitucionalização da Direito Civil fez vertiginoso giro teórico e prático da Responsabilidade Civil. Até mesmo a função social da reparação é hoje outra:
O princípio da proteção humana, determinando constitucionalmente, gerou no sistema particular da responsabilidade civil a sistemática extensão da tutela da pessoa da vítima, em detrimento do objetivo anterior de punição do responsável. [...] (MORAES, 2010, p. 323).
Faz-se essencial a releitura da responsabilidade civil, agora, sob o aspecto civil-constitucional. Só assim será possível atender às demandas por indenizações com justiça, efetiva proteção à pessoa humana e respeito ao ordenamento jurídico fundado na Constituição Federal, mormente diante da complexidade social a que alçou-se.
A partir de agora, pouco se falará na constitucionalização do direito civil, mas saiba que todo o escrito pretende-se imiscuído nessa sistemática. Mas quanto a solidariedade, esse verdadeiro pomo de ouro da Constituição do Brasil será amplamente trabalhado, já que é este princípio o mais relevante para as alterações da responsabilidade civil, como se verá.
O estudo da responsabilidade civil e as ações buscando a reparação de danos, certamente iniciaram-se junto com a ciência jurídica e com esta veio caminhando ao longo dos séculos. Não obstante, foi após a Revolução Francesa e com o Código de Napoleão que o tema ganhou matizes vivas.
Não era outro, a propósito, momento melhor. Justamente quando a Liberdade se tornou refrão do Direito e razão de sua existência que a responsabilidade civil encontra a graça dos estudiosos e dos cidadãos. Fora esta a forma encontrada para frear o homem da época que, incendiado pelos valores das liberdades econômica, política e social, precisava entender que seus atos, embora livres, eram responsáveis pelos danos que por desventura causassem. Certamente, mais conveniente do que criar normas restritivas e proibitivas, era reforçar a responsabilidade dos cidadãos e dos empreendedores.
“Responsabilidade e liberdade passam, assim, a ser noções intimamente vinculadas, uma servindo de fundamento à outra” (SCHREIBER, 2009, p. 12).
Por longos anos o estudo da responsabilidade civil evoluiu pautado por estes dois objetivos paradigmáticos, frear a liberdade do cidadão (imputando-lhe o dever de ressarcir a quem lesasse) e ao mesmo tempo protegendo essa mesma liberdade (minorando a necessidade de normas restritivas).
Não obstante, os tempos são outros. O Liberalismo e o Neoliberalismo, movimentos muitos mais que econômicos e políticos, já por duas vezes demonstraram sua franca derrota (crises de 1929 e de 2008). A sistemática de um Estado Social, mais intervencionista e impetuoso na vida privada, vem já há algum tempo se maturando na vida jurídica do país. A própria Constituição brasileira elegeu a idéia de um Estado Social (MELLO, 2008). Principalmente em seu art.3º, quando traz o princípio da solidariedade (TEPEDINO, 2008).
Esta opção social da Constituição e de parte do mundo, não poderia deixar de lançar luzes sobre a aplicação da responsabilidade civil. Segundo Moraes “[…] hoje a dignidade da pessoa humana, a solidariedade social, e a justiça distributiva influenciam profundamente toda a sistemática do dever de ressarcir” (2009a, p. 245).
Sob as máscaras da responsabilidade civil, a dogmática liberal, individualista e exclusivamente patrimonial do instituto vem sendo distendida, esticada, manipulada pelas cortes judiciais no seu intuitivo esforço de atender a um propósito mais solidário e mais consentâneo com a axiologia constitucional. (SCHREIBER, 2009, p. 7).
É uma postura bivalente, em que a solidariedade modifica a responsabilidade civil que, por sua vez, influi na efetivação do princípio da solidariedade:
[…] foi a consubstanciação da idéia de promoção da pessoa humana que deu foros de disciplina à responsabilidade civil, a qual acabou por se revelar a forma mais fácil e justa, até hoje, de tutelar a dignidade, isto é, a integridade psicofísica, a igualdade, a solidariedade e a liberdade humanas (MORAES, 2009b, p. 185).
A solidariedade, dentre outras eficácias, impõe que o lesado não sofra, sozinho, os prejuízos que a modernização lhe causa, uma vez que a todos, ou a quase todos, deve trazer benefícios. Daí dizer que “a responsabilidade civil tem hoje, reconhecidamente, um propósito novo: deslocou-se o seu eixo da obrigação do ofensor de responder por suas culpas para o direito da vítima de ter reparadas as suas perdas” (MORAES, 2009b, p. 12).
Neste painel histórico de proteção da liberdade ao guarnecer do social, evoluiu a responsabilidade civil. Em verdade, horas houve em que esta evolução se deu com avanços absurdos e não razoáveis, bem como com retrocessos mal intencionados.
Dias elabora um resumo bastante eficaz sobre a evolução da teoria da responsabilidade civil na história jurídica:
[…] a) individualismo, assente no princípio do atomismo social e expresso na fórmula: autonomia de vontade + culpa extracontratual = teorias clássicas da responsabilidade civil; b) transição, por influência da máquina e aumento dos sinistros. Suas conseqüências-ensaios são o mutualismo, a responsabilidade por acidentes, com interpretação semi-clássica (responsabilidade sem culpa); c) solução científica, expressa na responsabilidade social e individual pelo dano. (2006, p. 56).
O que não pode deixar de ser relevado é que as três fases acima postas sobrevivem conjuntamente neste tempo, formando uma mesma doutrina, ou assinalando tendências antagônicas.
No âmbito legislativo, pode-se citar como principais pontos de avanços em sede de responsabilidade civil: a previsão constitucional do dano moral (art.5º, X, CF) e dos fundamentos da dignidade humana (art.1º, III, CF) e da solidariedade (art.3º, CF); o Código de Defesa do Consumidor; e a cláusula geral de responsabilidade objetiva do Código Civil (art.927, § único, CC).
Não obstante, a jurisprudência evolui mais energicamente do que a legislação (TEPEDINO, 2008). Moraes chega a dizer que “o direito da responsabilidade civil é antes de tudo jurisprudencial” (2009a. p. 238).
O Poder Judiciário tem chamado para si a função de, partindo da norma posta, criar ou recriar o Direito. É o chamado ativismo judicial. Se o Judiciário tem legitimidade para tanto, é uma das principais questões do Direito Constitucional contemporâneo. No entanto, ao menos em sede de responsabilidade civil, este movimento do Poder, quando contido nas normas legais e constitucionais, é sim bem vindo:
A razão está em que as regras fundamentais de direito são suficientes como standard. Não se pode duvidar de sua eterna juventude e do seu incorruptível valor, se se repara em que, na matéria da responsabilidade, permanece íntegro o áureo princípio do neminem laedere. O que o tempo, o progresso, o aparecimento de novas e febris atividades industriais determinam é o ajustamento daquela regra às necessidades atuais. Nem sempre, porém, pode o legislador fazê-lo, porque as leis devem ter caráter, tanto quanto possível, estável. Basta que, em termo razoável, recomponham as normas de acordo com as exigências das práticas. Aos tribunais é que compete extrair dos preceitos fundamentais o pronunciamento que seja, na ocasião, o mais apto a realizar o fim do direito. (DIAS, 2006, p. 15) (grifo no original).
Como se pôde ver, o Poder Judiciário não está a legislar ou a furtar atribuições e competências do Poder Legislativo. Está sim complementando a atividade deste, exercendo a aplicação das normas e princípios jurídicos aos casos concretos, muitas vezes mais complexos do que os existentes ao tempo da lavratura da regra em aplicação. Portanto, o Judiciário não mais do que exerce seu dever republicano.
Barroso pergunta “Onde estaria, então sua legitimidade [do Judiciário] para invalidar decisões daqueles que exercem mandato popular, que foram escolhidos pelo povo?”(2009b, p. 8), mas no mesmo momento responde:
O fundamento normativo decorre, singelamente, do fato de que a Constituição brasileira atribui expressamente esse poder ao Judiciário e, especialmente, ao Supremo Tribunal Federal. A maior parte dos Estados democráticos reserva uma parcela de poder político para ser exercida por agentes públicos que não são recrutados pela via eleitoral e cuja atuação é de natureza predominantemente técnica e imparcial. […] Na medida em que lhes cabe atribuir sentido a expressões vagas, fluidas, e indeterminadas, como dignidade da pessoa humana, direito de privacidade ou boa-fé objetiva, tornam-se, em muitas situações, co-participantes do processo de criação do Direito. (2009b, p. 8)
Tem sido o próprio legislador que prefere pautar-se em normas abertas ou omissões intencionais para que o tema não se prenda à rigidez da norma legal, se a sociedade drasticamente caminha (MORAES, 2009a). “O legislador, na impossibilidade de prever tão espantoso desenvolvimento, limitou-se a estabelecer algumas regras gerais […]” (DIAS, 2006, p. 17). É a atividade judicial quem deve integrar o direito, dando-lhe efetividade ao caso concreto e não permitindo que danos injustos sigam sem reparação por ausência de regramento. É a lição de Venosa (2008, p. 422) ao afirmar que as cláusulas gerais “não só incentivam, mas, na verdade, obrigam o juiz a decidir sob o prisma dos valores, do contexto histórico e das exigências sociais”.
Ademais, há de se sobrelevar o processo civil como locus ideal de debate e participação democrática do cidadão na formação jurídico-política da pátria (ZANETI JÚNIOR, 2007), enquanto, nesse mesmo sentido, Passos (2009) anuncia a judicialização do direito como o resgate da missão emancipatória humana no atual paradigma histórico.
Devido ao referido ativismo judicial em responsabilidade civil e, principalmente, à socialização e constitucionalização do Direito estabeleceu-se novos conceitos de danos, o nexo causal ganhou elasticidade ímpar abrangendo mais e mais “causas” e a culpa teve seu papel reduzidíssimo, assim também o ato ilícito (SCHREIBER, 2009).
A Responsabilidade Civil é campo de discussões acirradas. Sequer seu conceito é pacífico na doutrina. Cada doutrinador, embevecido por teoria esta ou aquela, delineia a questão com as palavras que entende devidas.
Ousamos conceituar como ciência jurídica de natureza não criminal que estuda o dano e sua reparação. O que se pretende é apontar que a preocupação atual acirra na lesão e na necessidade de efetiva reparação.
Baseia-se este conceito na lição de Dias:
[…] já não é de responsabilidade civil que se trata, se bem que haja conveniência em conservar o nomen juris, imposto pela semântica: o problema transbordou desses limites. Trata-se, com efeito, de reparação do dano. (2006, p. 18) (grifo no original)
Embora, toda a doutrina clássica paute seus estudos em três grandes pilares: o dano, o nexo causal e a culpa (GONÇALVES, 2005), o cenário atual é um pouco diferente:
Partindo desta imagem, o estágio atual da responsabilidade civil pode justamente ser descrito como um momento de erosão dos filtros tradicionais da reparação, isto é, de relativa perda de importância da prova da culpa e da prova do nexo causal como obstáculos ao ressarcimento dos danos na dinâmica das ações de ressarcimento. (SCHREIBER, 2009, p. 11/12) (grifo no original)
Ainda que se reconheça a erosão dos filtros (pressupostos) da responsabilidade civil (culpa, dano e nexo causal), mister conceder-lhes um estudo pormenorizado. É este o principal objetivo do presente trabalho.
a) culpa
Dias, ao formular conceito de culpa, demonstra a essência subjetivista que a teoria clássica propunha:
Para nós, a culpa é a situação contrária ao que consideramos, recorrendo à linguagem teológica, o estado de graça, isto é, aquele em que não há possibilidade de censura, em face da lei moral, da lei positiva ou de quaisquer espécies de mandamento imposto ao homem, como tal, como membro da sociedade ou como religioso. Ora, a teoria subjetiva admite a responsabilidade quando não há possibilidade de semelhante censura. (DIAS, 2006, p. 93) (grifo no original)
Cavalieri Filho, por sua vez, lavra conceito da culpa stricto sensu nos seguintes termos: “[…] o descumprimento de um dever de cuidado, que o agente podia conhecer e observar, ou, como querem outros, a omissão de diligência exigível […]” (2008, p. 32). Venosa é mais objetivo ao tracejar a culpa como sendo: “a inobservância de um dever que o agente devia conhecer e observar” (2007, p. 22).
Inegável que a culpa, como conceito da responsabilidade civil, apresenta conteúdo subjetivo. Até mesmo a negligência (falta de zelo), a imperícia (ausência de habilitação, ciência ou técnica) e a imprudência (agir perigosamente) não são palavras com semântica desvinculada de inspiração interior. Dolo e culpa dependem “de uma valoração da conduta do sujeito daí chamar-se responsabilidade subjetiva aquela responsabilidade fundada na culpa” (TEPEDINO, BARBOZA e MORAES, 2007, p. 337) (grifo no original).
Entretanto, os conceitos acima vistos são da ciência clássica da responsabilidade civil. Os novos ventos constitucionais, mais sociais, objetivaram a culpa. “Ora, a proteção à vítima de acidentes – que tem sido uma das principais preocupações no campo jurídico-privado – vem proporcionando a constante objetivação da base da responsabilidade civil […]” (BITTAR e BITTAR FILHO, 2003, p. 161).
De olho nestes novos tempos, Tepedino e Schreiber discursam acerca do novo conceito de culpa:
[…] a própria noção de culpa modificou-se, para deixar de ser um estado anímico do sujeito, e passar a ser vista como a violações a padrões objetivos (standards) de conduta. Não se trata de supor o cuidado que teria o homem médio – personagem fictício da tradicional ciência do direito –, mas de observar os cuidados e precauções impostos pelas normas jurídicas, éticas e costumeiras naquele ambiente específico. (2008, p. 42)
Assim, no caso concreto a análise da culpa deve prender-se às circunstâncias do evento dano, analisando se o agente lesivo deixou de observar os deveres de cuidados jurídica e socialmente impostos, naquelas específicas circunstâncias reais.
Por exemplo, aquele que, embora sem ser habilitado (não possui CNH), dirija seu carro pelas ruas de uma cidade observando as regras de trânsito e direção defensiva, vem a ser colhido por outro veículo em alta velocidade, poderá não ser responsabilizado. Embora o motorista seja imperito (art.140, CTB) e tenha cometido ato ilícito (art.162, I, CTB) pode não ter quebrado os deveres de cuidado exigidos. Ou seja, para o homem médio do liberalismo, o motorista inabilitado age com culpa (imperícia), mas para o direito civil-constitucional não, porque, embora inabilitado observou os cuidados exigíveis naquelas circunstâncias específicas.
Assim se pronunciou o STJ:
Não é possível reconhecer a existência de culpa concorrente da vítima pelo simples fato de que esta dirigia com a carteira de habilitação vencida. Muito embora tal fato seja, por si, um ilícito, não há como presumir a participação culposa da vítima no evento apenas com base em tal assertiva, pois essa presunção é frontalmente dissociada, na presente hipótese, das circunstâncias fáticas narradas nos autos e admitidas como verdadeiras pelo acórdão recorrido. (STJ, REsp 604758 / RS, DJ 18/12/2006 p. 364)
A responsabilidade subjetiva em si, no entanto, é um reflexo de tempos idos:
A culpa é, inegavelmente, a categoria nuclear da responsabilidade civil concebida pelos juristas da Modernidade. A ideologia liberal e individualista, então dominante, impunha a construção de um sistema de responsabilidade que se fundasse no mau uso da liberdade individual, justificando, desta forma, a concessão de um amplo espaço à atuação dos particulares. (SCHREIBER, 2009, p. 12)
Até mesmo a objetivação do conceito da culpa é insuficiente para servir ao cidadão contemporâneo. A responsabilidade subjetiva é relativizada e seu uso posto a escanteio. Cria-se a responsabilidade objetiva, que independe da análise da culpa, mais consentânea com a realidade vigente.
Filomeno (2005) indica alguns fatores impulsionadores da responsabilidade objetiva, podemos citar: a produção em massa, a insuficiência da responsabilidade subjetiva, a teoria do risco, e, no campo do direito consumerista, a vulnerabilidade do consumidor. Mas não são só esses os fatores; Bittar e Bittar Filho, no mesmo sentido, destacam “[…] a intervenção do Estado nos domínios privados, e a evolução do pensamento humano, com a predominância de um sentido social no enfoque e na solução das questões então surgidas […]” (2003, p. 166). Segundo Venosa os novos princípios constitucionais, pautados em uma corrente solidária foram de grande influência para a fortificação da teoria objetiva:
A questão tem a ver com os princípios de dignidade humana do ofendido e da sociedade como um todo. Muito cedo se percebeu no curso da história que os princípios da responsabilidade com culpa eram insuficientes para muitas das situações de prejuízo, a começar pela dificuldade da prova. (2007, p. 11)
É o mesmo pensar de Lôbo, segundo quem (2008, p. 10): “A crescente opção do direito para a responsabilidade objetiva responde à valorização da solidariedade social, com a desvalorização correspondente da concepção individualista da culpa”.
O que se pode observar, principalmente pelos estudos históricos de Côrrea (2009), é que “responsabilidade objetiva” e “princípio da solidariedade” estão de tal modo ligados que a responsabilidade objetiva deve ser aplicada sempre que essencial à efetivação da solidariedade e não apenas quando expresso em lei:
[…] a atual configuração do que consideramos um modelo hermenêutico metodológico, qual seja: justamente a idéia de que as regras da responsabilidade civil objetiva podem ser visualizadas como forma de concretização do valor da solidariedade e da diretriz da socialidade, assim estabelecendo para certas normas jurídicas um sentido social […] (CÔRREA, 2009, p. 2).
Com a construção da responsabilidade objetiva, a culpa perdeu seu anterior papel de filtro da responsabilidade civil, que atualmente vem exercido, bem ou mal, pelo nexo causal e pela seleção do dano (SCHREIBER, 2009). Ocorre que com o alargamento da aplicação da responsabilidade objetiva, “[…] toda a discussão, nas ações de responsabilidade objetiva, passou a gravitar em torno da noção jurídica de nexo causal” (SCHREIBER, 2009, p. 54), próximo ponto a ser estudado.
b) nexo causal
Gagliano e Pamplona Filho definem nexo causal como sendo o “elo etiológico, do liame, que une a conduta do agente (positiva ou negativa) ao dano” (2009, p. 85).
Schreiber complementa o conceito ao afirmar que:
[…] o nexo de causalidade natural ou lógico diferencia-se do jurídico, no sentido de que nem tudo que, no mundo dos fatos ou da razão, é considerado como causa de um evento pode assim ser considerado juridicamente. A vinculação da causalidade à responsabilização exige uma limitação do conceito jurídico de causa, sob pena de uma responsabilidade civil amplíssima. (2009, p. 53).
Parece simples, mas o nexo causal é um verdadeiro emaranhado de teses que, antes de explicar as diversas questões surgidas nas ações de reparação civil, muitas vezes obscurecem. “Este é o mais delicado dos elementos da responsabilidade civil e o mais difícil de ser determinado. Aliás, sempre que um problema jurídico vai ter na indagação ou na pesquisa da causa, desponta a sua complexidade maior” (PEREIRA, 2001, p. 76) (grifo no original).
Como dito, muitas são as teorias do nexo causal, tais quais: causalidade adequada, teoria da equivalência das condições, teoria da causalidade eficiente e teoria da causalidade direta e imediata. A jurisprudência adota posição eclética, utilizando vez uma teoria, em outro momento as mescla, sem um consenso (SCHREIBER, 2009).
A indefinição quanto às teorias da causalidade tem servido, muito mais do que a qualquer das soluções teóricas propostas, a garantir, na prática, reparação às vítimas dos danos. Os tribunais têm, por toda parte, se valido da miríade de teorias do nexo causal para justificar um juízo antecedente de responsabilização, cuja finalidade, consiste, quase sempre, em assegurar à vítima alguma compensação. (SCHREIBER, 2009, p. 63-64).
As dificuldades da teorização do nexo causal sobrelevam-se em uma sociedade de riscos. A evolução tecnológica, os usos de mecanismos de vigilância, a internet, a densidade demográfica dos centros urbanos, a mecanização do trabalho, a degradação do meio ambiente, dentre tantas outras realidades da vida pós-moderna, retiram do acidente a característica de excepcionalidade. O dano, o acidente, os riscos passaram a integrar a vida cotidiana (MARTINS FILHO, 2009). Neste cenário, “O responsável pelo dano é, por sua vez, mais difícil de individualizar, em razão da multiplicidade das cadeias de produção tanto quanto de decisão” (VARELLA, 2009, p. 34).
Neste novo contexto, a utilização de um princípio de imputabilidade moral para justificar que o dano fosse transferido da vítima ao agente revelava-se incondizente com as diversas espécies de relações jurídicas próprias da sociedade moderna. (MORAES, 2009a, p. 250)
Dessa forma, afasta-se a singela teoria da imputação moral e do liame causal natural, inadequados na realidade pós-moderna e ineficaz na responsabilidade objetiva. Moraes, citando Rodotá (1967 apud MORAES, 2009b, p. 154) esclarece que:
[…] o problema da responsabilidade civil não consiste na investigação ou na descoberta do “verdadeiro” autor do fato danoso. Ele diz respeito, apenas, “à fixação do critério graças ao qual se pode substituir a atribuição automática do dano por um critério jurídico”; isto é, trata-se de estabelecer quem, em que condições e no âmbito de que limites deve suportar o dano.
Côrrea apresenta lição similar:
Ocorre que o juízo sobre a existência do nexo causal entre o ato do agente e o dano é muitas vezes apresentado nas decisões judiciais e na doutrina como sendo a mera aplicação do princípio científico da causalidade (Se A existe, B existe). Esse juízo científico seria neutro, sendo utilizado como forma de justificar de maneira imparcial a aplicação do princípio da imputação […]. Todavia, a pergunta que surge a partir dessa afirmação é: Essa anterioridade da causalidade é um pressuposto necessário à imputação? Ou seja, é somente ao agente causador do dano, direta ou indiretamente, que se pode imputar a responsabilidade de repará-lo?
A resposta deve ser negativa, já que, no que diz respeito à imputação, a pergunta não é quem realizou o ato, questão atinente ao mundo dos fatos, mas quem responde por esse ato frente a outras pessoas, questão atinente ao mundo das normas, isto é, ao direito. (CÔRREA, 2009, p. 484-485)
Côrrea explica, ainda:
Ocorre que não são todas as formas de responsabilidade jurídica que exigem uma construção tão estreita de nexo causal em que o dano é resultado da conduta do responsável, como ocorre nas situações envolvendo responsabilidade por ato ilícito, sendo que, nos casos em que a responsabilidade se dá em razão do risco, tal não é necessário […] (2009, p. 488)
Por fim, conclui o professor:
Nessa linha, é possível concluir que a definição de determinado ato/fato como hipótese contida na esfera de risco atribuída ao sujeito constitui o eixo da discussão acerca da responsabilidade objetiva. Diferentemente da cadeia causal, que é infinita, a linha da imputação possui sempre um ponto final, que não é descoberto, mas escolhido. (CORRÊA, 2009, p. 488).
E ainda:
Tem-se, então, que a uma determinada posição social corresponde uma esfera de responsabilidade que permite imputar àqueles sujeitos que ocupam a referida posição os prejuízos que, ainda que não causados por eles, devem ser por eles assumidos. Recorre-se à idéia de papel social e não à de casualidade física para selecionar o sujeito responsável, enfatizando-se, assim a importância de regras que definam instituições e papéis sociais. (CÔRREA, 2009, p. 534) (grifo nosso)
Portanto, acerca do nexo causal, na responsabilidade objetiva, é preciso antes buscar identificar, dentro do ordenamento jurídico, a quem o risco é atribuído. Ou seja, quem foi escolhido para, de acordo com seu papel social, suportar os danos advindos, direta ou indiretamente, dos riscos criados ou adstritos a este papel social.
Na decisão política sobre quem deve ser responsabilizado pelo dano, releva importância o princípio da solidariedade. Tal princípio, segundo Martins Filho “implica que os homens cultivem uma maior consciência do débito que têm para com a sociedade em que estão inseridos” (2009, p. 26) e, segundo Moraes, impõe a todos um dever jurídico e um pragmatismo de forma que
O princípio constitucional da solidariedade identifica-se, desse modo, com o conjunto de instrumentos voltados para se garantir uma existência digna, comum a todos, numa sociedade que se desenvolva como livre e justa, sem excluídos ou marginalizados. (2010, p. 247)
Nesse sentido, as teorias acerca do risco respondem, em um sem-número de casos concretos a questão do nexo causal. Expliquemos.
Se, de uma ou doutra forma são todos beneficiados pelo avanço tecnológico e seu uso, devem todos responder pelos riscos ocasionados. Noutro giro, entretanto, certo é que desenvolvimento econômico e tecnológico não é necessariamente desenvolvimento social (DALLARI, 2003). Ao revés do que prega a ideologia segundo a qual “deve-se deixar o bolo primeiro crescer para depois parti-lo”, o desenvolvimento social deve ser iminente ao desenvolvimento econômico e tecnológico, segundo o princípio da solidariedade. Muitos são os mecanismos públicos para isso engendrar, uma delas é a responsabilidade civil, conforme aponta Moraes:
Desse modo, a responsabilidade civil tornou-se a instância ideal para que, através do incremento das hipóteses de dano indenizável, não somente seja distribuída justiça, mas também seja posto em prática o comando constitucional da solidariedade social. (2009b, p. 23-24)
Desenvolveu-se então a inversão da ideologia do bolo. Se a vítima não pode arcar com o risco, porque é certamente a menos favorecida, a desfavorecida em verdade, também não pode ser somente aquele que retém a vantagem direta, porque a sociedade, lato sensu, alcança benefício indireto pelo desenvolvimento do risco. A divisão do dano entre quem tem proveito e quem cria o risco faz-se necessária. “[…] em um cenário de proliferação de danos anônimos ou casuais, mais justo parece ser a diluição destes danos por toda sociedade” (SCHREIBER, 2009, p. 226).
Essa nova visão formula a idéia de que quem cria o risco, deve arcar diretamente com o dano, ressarcindo a vítima, repassando em seguida o prejuízo aos consumidores e beneficiados indiretos, acrescendo o preço da indenização nos custos. A realidade arriscada já levaria os grupos responsáveis pelos danos a se prevenirem do prejuízo dos riscos através de seguros que encareceriam o preço de seus produtos e serviços, pagos por toda a sociedade. É o que parece ponderar Moraes ao lembrar que “Na medida em que estes danos anônimos são algo esperado pelo próprio desempenho da atividade, a imposição do dever de repará-los há de decorrer da mera assunção deste risco.” (2009a, p. 250).
Resumindo. Nos casos em que houver iniciativa voltada ao lucro, a imputação da responsabilidade recai sobre quem, diretamente tenha criado e esteja lucrando com o risco que acarretou o dano. O nexo causal se encerrará nestas pessoas, independente da distância efetiva que estejam da vítima.
Vejamos, por exemplo, o art.12 do CDC. Embora entre o fabricante e o consumidor exista um iter complexo de causas e concausas (atividades humanas e tecnológicos, eventos climáticos, acidentes, transporte, guarda dos bens, distribuição, etc), aquele será o responsável independente de sua atividade em si. O fabricante poderá até mesmo demonstrar que a fabricação do produto aconteceu de forma perfeita e que, portanto, o vício no produto surgiu em momento posterior, no transporte ou na guarda do bem, mas mesmo assim não conseguirá se esquivar de indenizar o consumidor. Isso porque o papel social que exerce, fabricante de bens de consumo, exige, no Estado Constitucional, que ele se responsabilize pelos danos advindos de seus produtos.
Para melhor compreender, deve-se imaginar que cada agente social possui um âmbito de responsabilidade previamente estabelecido pelo ordenamento, geralmente, com fincas na sua função social.
Um outro exemplo, interessante por ser criação unicamente da jurisprudência, sem base em norma expressa à época, é o da súmula 492 do STF: “A empresa locadora de veículos responde, civil e solidariamente com o locatário, pelos danos por este causado a terceiro, no uso do carro locado”. Se é a empresa quem diretamente lucra com os riscos que criou, não é consentâneo com o principio da solidariedade que permita à vitima o dano sem ressarcimento:
É teoria do risco em sua genuína feição. Risco-proveito (a locadora, ao firmar contratos onerosos de aluguel de veículos, recebe contraprestação financeira por ela buscada); risco-criado (a locadora, ao disponibilizar, no mercado, veículos seus para aluguel, cria risco que deve ser indenizado, se houver dano). (FERREIRA FILHO, VIEIRA e COSTA, 2010, p. 117)
Atualmente há norma expressa a solucionar o caso sumulado, disposta no art.17 do CDC. O terceiro lesado é caracterizado como consumidor equiparado.
Quase o mesmo poderia se dizer da súmula 28 do STF: “O estabelecimento bancário é responsável pelo pagamento de cheque falso, ressalvadas as hipóteses de culpa exclusiva ou concorrente do correntista”. Aqui também a responsabilidade é imputada de acordo com o papel social que os bancos exercem, responsáveis pela segurança nas transações financeiras.
Não obstante, é importante asseverar. Nem sempre a imputação da responsabilidade vai encontrar circunstâncias de empresas e atividades lucrativas. Ou seja, nem sempre haverá alguém lucrando, ou tentando lucrar, com o ato lesivo. Nestes casos, a imputação da responsabilidade deverá ocorrer de acordo com outros valores relevantes do ordenamento, observando a partir daí os papéis sociais exercidos pelos envolvidos.
Por exemplo: os pais são responsáveis pelos danos causados pelos filhos menores, não só porque o ordenamento determina (art.932, I, CC), mas por causa do papel social que eles exercem. O poder parental, o princípio da paternidade responsável, a solidariedade familiar, todas essas questões jurídicas determinam que os pais assumam os atos dos filhos como se fossem próprios, não porque são culpados pelos atos lesivos dos filhos, mas porque são responsáveis por eles.
Mesmo assim é possível afirmar que o nexo causal, nos casos de indenização, vai sempre ser levado pelo princípio da solidariedade até o responsável. Na responsabilidade dos pais também é possível encontrar reflexos do princípio da solidariedade, quando se percebe que “O fundamento da responsabilidade dos pais é, hoje, o de se garantir ressarcimento à vítima.” (TEPEDINO, BARBOZA e MORAES, 2006, p. 830).
À guisa de conclusão, lembra-se que o nexo causal é estabelecido pelo sistema jurídico, e não encontrado na natureza dos acontecimentos. Portanto, cabe ao jurista, em cada caso concreto, descobrir a quem o ordenamento impõe a obrigação de arcar o dano.
c) dano
O dano é o ponto inicial da responsabilidade civil. “Sem a ocorrência deste elemento não haveria o que indenizar, e, conseqüentemente, responsabilidade.” (GALIANO e PAMPOLHA, 2009, p. 35).
Cada vez mais, é verdade, a responsabilidade civil supera a própria idéia de dano, abraçando, em seu lugar, a prevenção. É o que já se nota no Direito Ambiental (SIRVINSKAS, 2008). Parece mesmo justo aproximar o sentido técnico do coloquial: responsável é quem não causa dano.
A doutrina mais clássica conceitua dano simplesmente como prejuízo, sendo o dano moral uma dor na alma ou um constrangimento (RIZZARDO, 2009). Este conceito subjetivo de dano moral é até hoje defendida pelo STF (RE 387.014-AgR, DJ de 25 jun. 2004).
No entanto, principalmente devido ao dano moral, foi preciso construir uma noção mais abrangente e ao mesmo tempo objetiva de dano (SCHREIBER, 2009). Acabou-se por conceituá-lo como lesão a um interesse juridicamente tutelado. Muitos são os autores que assim firmam, como, por exemplo: Schreiber (2009), Moraes (2009b), Lomeu (2008), Diniz (2010), Gagliano e Pamplona Filho (2009). “A vantagem desta definição está em concentrar-se sobre o objeto atingido – interesse lesado –, e não sobre as conseqüências econômicas ou emocionais da lesão sobre determinado sujeito” (SCHREIBER, 2009, p. 104).
Obstado, ou impedido a realização do interesse, seja por ato lícito ou ilícito, comissivo ou omissivo, gera ao seu titular um dano que poderá lhe conceder direito à indenização.
Conquanto, nem todos os danos são passíveis de ressarcimento no direito brasileiro. A seleção dos danos indenizáveis, é uma das pedras de toque dos novos estudos da responsabilidade civil (SCHREIBER, 2009).
Caminharemos agora pela difícil temática da seleção dos danos indenizáveis.
Segundo Schreiber, cabe ao Pode Judiciário “a responsabilidade de estipular, à margem de previsão legal específica, os interesses que são merecedores de tutela, e cuja violação, portanto, enseja danos ressarcíveis” (2009, p. 136). Obviamente, uma ausência de critérios doutrinários para se pautar a jurisprudência ocasionaria a indigesta ausência de segurança jurídica que, embora não deva ser um dogma, também não pode ser completamente desconsiderada. Além disso, a ausência de critérios pode ocasionar um problema moral na sociedade: “[…] a resultar a desmoralização do dano moral, e, conseqüentemente, da dignidade humana. Quando tudo se pode indenizar, passa-se a acreditar que tudo tem seu ‘preço’” (MORAES, 2009a, p. 52-53).
Passa-se agora ao estudo destes critérios.
Há de se ressaltar, primeiro, que o dano deva ser injusto, isto é: “O dano será injusto quando, ainda que decorrente de conduta lícita, afetando aspecto fundamental da dignidade humana, não for razoável, ponderados os interesses contrapostos, que a vítima dele permaneça irresarcida” (MORAES, 2009b, p. 179).
Deve-se observar por essa afirmação que haverá danos que deverão ser sofridos pela vítima, em nome da solidariedade social. Em uma sociedade plural e solidária, certos lesões serão necessárias para a concretização de um interesse mais relevante.
Por essa razão:
[…] o problema do dano ressarcível exige, sem dúvida, uma outra abordagem. O juízo do merecimento de tutela, a cargo das cortes, somente pode derivar de uma análise concreta e dinâmica dos interesses contrapostos em cada conflito particular, que não resulte em aceitações gerais pretensamente válidas para todos os casos, mas que se limite a ponderar interesses à luz das circunstâncias peculiares. Deixa-se, assim, de se perseguir enumeração de novos interesses protegidos pelo ordenamento jurídico de forma geral e abstrata – tarefa exclusiva do Poder Legislativo – e se passa simplesmente a definir, em cada caso concreto, o âmbito de prevalência dos diversos interesses contrapostos. Com isto, revela-se uma faceta do dano até então desprezada pela doutrina: a de funcionar como uma espécie de cláusula geral, que permite ao Poder Judiciário, em cada caso concreto, verificar se o interesse alegadamente violado consiste, à luz do ordenamento jurídico vigente, em um interesse digno de proteção, não apenas em abstrato, mas, também e sobretudo, face ao interesse que se lhe contrapõe (SCHREIBER, 2009, p. 138).
Schreiber, nesse caminho, erigiu uma técnica de identificação dos interesses jurídicos protegidos pela responsabilidade civil baseada em uma ponderação de interesses que, resumidamente, consiste na determinação,
[…] em casos concretos, se a interferência de um certo interesse sobre outro deve ser considerada legítima ou se, ao contrário, não deve ser admitida, consubstanciando em uma lesão a um interesse concretamente merecedor de tutela, isto é, um dano ressarcível. (SCHREIBER, 2009, p. 154).
Prossegue o professor:
Tal metodologia deve ser dividida em duas fases: a primeira, em que se verifica o merecimento de tutela em abstrato dos interesses conflitantes; e a segunda, em que, não havendo prevalência estipulada entre dois interesses tutelados (por receberem ambos, em abstrato, proteção de igual patamar), confere-se ao juiz um espaço de ponderação para que decida qual interesse deve prevalecer à luz das circunstâncias concretas. (SCHREIBER, 2009, p. 160)
Outrora, clareia:
A aferição do dano na perspectiva aqui defendida, ao transcender a mera tutela em abstrato do interesse alegadamente lesado, depende da ocorrência de violação à área concreta de atuação legítima deste mesmo interesse, área que somente pode ser definida frente ao interesse lesivo. Isto implica em se analisar, diante de qualquer pedido de reparação, o ordenamento jurídico como um todo, no intuito de determinar (i) se o interesse alegadamente lesado é merecedor de tutela em abstrato; e (ii) se o interesse é concretamente merecedor de tutela diante da interferência representada pelo interesse lesivo. Nesta segunda etapa, é dado naturalmente relevante o fato de ser o interesse lesivo tutelado ou não pelo ordenamento jurídico, porque, enquanto no primeiro caso, exigir-se-á uma efetiva ponderação judicial, no segundo, parte-se da ponderação previamente realizada pelo legislador, ainda que sobre tal ponderação possa o juiz exercer certo controle de validade e adequação. (SCHREIBER, 2009, p. 158).
Para a compreensão do que diz o autor, mister elevar a cerne da discussão da reparação civil os interesses jurídicos envolvidos, sem desmesurar previamente o interesse do que quer ver-se ressarcido e o daquele a quem se busca impor o ônus da reparação.
A ponderação tem encontrado muita acolhida na doutrina nacional. Embora tenha críticos pungentes e razoáveis, como Ferraz (2009), é defendidos por autores de grande repercussão como Bonavides (2010), Barroso (2009), Ávila (2009), Sarmento (2010), Barcellos (2008). Não obstante, não se iluda, o princípio da proporcionalidade não é matéria pacífica mesmo entre seus defensores, já que muitas vezes seus critérios, métodos e utilidade são muito debatidos em todas as doutrinas.
Mesmo assim, alguns critérios (passos) para a aplicação do princípio da proporcionalidade parecem, até certo ponto, ter encontrado consenso. Segundo a maior parte da doutrina, ponderar faz-se através dos critérios da (a) utilidade ou adequação (b) necessidade ou exigibilidade e (c) proporcionalidade em sentido estrito. Dessa forma, com base em Barroso (2008), será legitima a medida que submetida as seguintes perguntas obtiver resposta positiva: (a) a medida é adequada para alcançar os fins que se destinam? (b) a medida é necessária (ou o objetivo pode ser alcançado sem ela)? (c) o dano ocasionado pela medida é menos grave ou valioso do que o objetivo alcançado?.
Alerta-se também que a jurisprudência tem utilizado o postulado da ponderação sem acuro técnico-jurídico, nem mesmo os métodos dotados de certo consenso na doutrina são estritamente observados na fundamentação das decisões (FERRAZ, 2009).
Como se pode ver, a utilização da ponderação na argumentação jurídica exige conhecimento e cuidados técnicos profundos. Ao trazer o postulado para utilização no direito civil, em que debatem-se interesses privados e sociais, é exigido ainda maior acuidade ao aplicador. Remetemos o leitor ao necessário aprofundamento do estudo junto aos constitucionalistas.
Ademais, reitera-se que a ponderação de interesses é um método de exceção: só deve ser utilizada na última etapa da seleção de danos, se as antecedentes não resolverem por si mesmas a questão. Ora, se o legislador já tiver escolhido o interesse prevalente, não há que se utilizar do método excepcional.
Nos casos de inscrição ilegítima de nome de consumidor no SPC, por exemplo, não é preciso recorrer à ponderação porque já se sabe de antemão que o legislador privilegia o direito ao bom nome e boa fama (art.17, CC) frente aos interesses patrimoniais da suposta credora.
Como lembra Barcellos, a ponderação é “[...] uma técnica de decisão para casos difíceis (do inglês “hard cases”), em relação aos quais o raciocínio tradicional da subsunção não é adequado.” (2008, p. 55)
A jurisprudência do STF já demonstrou disposição para utilizar a regra da ponderação de interesses em responsabilidade civil:
A CF, embora garanta o exercício da liberdade de informação jornalística, impõe-lhe, no entanto, como requisito legitimador de sua prática, a necessária observância de parâmetros – entre os quais avultam, por seu relevo, os direitos da personalidade – expressamente referidos no próprio texto constitucional (CF, art. 220, § 1º), cabendo ao Poder Judiciário, mediante ponderada avaliação das prerrogativas constitucionais em conflito (direito de informar, de um lado, e direitos da personalidade, de outro), definir, em cada situação ocorrente, uma vez configurado esse contexto de tensão dialética, a liberdade que deve prevalecer no caso concreto.’ (AI 595.395/SP).
Conceituar dano pode até parecer simples, no entanto entendê-lo ressarcível ou não é árduo. Necessita atenção redobrada às características do caso concreto, observação das atuais valorações da sociedade e do ordenamento jurídico e principalmente desprender-se de preconceitos que possibilitem um desmerecimento de um ou outro interesse castrador da pluralidade que deve prevalecer em nosso país.
A argumentação jurídica e a efetiva participação, das partes e de setores interessados da sociedade na condução do processo de ponderação garantirá a legitimidade e justiça das decisões judiciais. Eis a utilidade democrática, além de social, que a responsabilidade civil-constitucional pretende, possibilitar ao Judiciário participar com legitimidade da escolha política dos valores maiores da sociedade.
4 CONCLUSÃO
A responsabilidade civil não se limita aos conceitos e questões aqui trabalhados. Ao revês, fez-se aqui uma breve introdução. Uma caminhada tão curta que sequer se pode tentar tocar o horizonte. Até porque, o próprio direito dos danos não se esgotou, mas permanece em polvorosas, levantando uma nova dúvida a cada dia. Em verdade, a responsabilidade civil é hoje o instituto jurídico que mais reflete a sociedade pós-moderna e seus anseios.
Plural e socializada. Todos diferentes, mas interligados em um mesmo curso de vida. Eis um ambiente para os mais nobres testemunhos de solidariedade e para os mais variados litígios. Estar lado a lado, com um mesmo objetivo mas com mentalidade e escolhas tão diferentes. É preciso ponderar interesses, identificar responsáveis, prevenir danos, proteger sem aprisionar, respeitar sem desenfrear. A responsabilidade civil parece o caminho mais adequado para conseguir harmonizar a balança sem trucidar com as diferenças, auxiliando a sociedade em sua bela saga de convivência e elevação. Eis a importância de sagrar nos estudo e prática da responsabilidade civil-constitucional.
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