A ALTA PROGRAMADA E A PREVIDÊNCIA SOCIAL. ASPECTOS JURÍDICOS DA INCAPACIDADE.
Mauricio Matos Mendes*[1]
RESUMO: O artigo tem a finalidade de analisar o atual sistema de cessação do Auxílio Doença, espécie de benefício mantido pelo Regime Geral de Previdência Social. A “Alta Programada”, como é conhecido o sistema de cessação, é analisada a partir de avaliação histórica do sistema previdenciário. São analisados os aspectos jurídicos relativos à natureza do instituto da incapacidade, sua aplicação pela Previdência Social e os limites impostos ao gestor do sistema quanto à sua utilização.
Palavras Chave: alta programada, beneficio por incapacidade, auxílio-doença, segurado,
ABSTRACT: The article aims to analyze the current system of termination of the Sickness Benefit, a kind of benefit retained by the General Welfare. The "High" Scheduled, is known as the termination system is analyzed from historical evaluation of the pension system. It analyzes the legal aspects concerning the nature of the Institute of disability, applied for Social Security and the limits imposed on the manager as to their use.
Keywords: high-scheduled, disability benefit, sickness benefit, insured.
I - INTRODUÇÃO:
Muito já se escreveu sobre os benefícios mantidos pela Previdência Social brasileira, utilizando as mais diversas abordagens possíveis. A cada notícia de possível ou provável modificação no alcance social de algum benefício ou nas condições de sua concessão, inúmeras análises são efetuadas, quase sempre de forma apaixonada e com vistas ou à manutenção do padrão estabelecido do benefício, ou sua ampliação, ou muitas vezes procurando justificar seu alcance social ou suas condições de fruição, ou, não raro, procurando justificar sua redução e quando nada, sua supressão.
Este texto tem a intenção de lançar algumas luzes sobre um aspecto da administração previdenciária que tem trazido extensa sobrecarga de trabalho sobre o já extenuado Judiciário, que, como escoadouro natural das demandas para solução das injustiças, vê-se à frente de mais uma, ou melhor, de mais alguns milhares delas: a dos cidadãos que buscam proteção judicial contra a conhecida “alta programada”.
Para conseguir tal intento abordaremos a evolução do instituto jurídico incapacidade no sistema previdenciário brasileiro com vistas a sua localização no sistema jurídico-constitucional pátrio para, a partir desse patamar, estudá-lo no contexto do atual beneficio por incapacidade mantido pelo Regime Geral de Previdência Social, denominado Auxílio-Doença.
Ao final analisaremos os aspectos relacionados ao sistema utilizado pela autarquia responsável pela gestão previdenciária, denominado “Alta Programada”[2], quanto à sua legalidade a partir da evolução do sistema protetivo que restou inscrito na Carta Maior.
II – PEQUENA ANOTAÇÃO SOBRE A EVOLUÇÃO HISTÓRICA:
No Brasil a evolução do sistema de seguridade social ocorreu de forma lenta, e na maioria das vezes, acompanhando o desenvolvimento econômico do país e a evolução da sociedade. Dos fundamentos do seguro privado - de natureza civil - ao conceito de Seguro Social instituído por Bismarck em 1881, e deste ao conceito de Seguridade Social tal como insculpido na Constituição de 1988 muito se evoluiu, não apenas no conceito jurídico de cada um dos modelos de proteção, mas, principalmente, no alcance social do sistema protetivo pátrio.
Castro e Lazzari (2009, p.62) ao informarem sobre as primeiras regras de proteção social no Brasil utilizam-se de cátedra de Marcelo Leonardo Tavares que registra o caráter eminentemente assistencial e beneficente dessa proteção, citando a criação das Santas Casas de Misericórdia, em que registra a mais antiga delas fundada no Porto de São Vicente em 1543, e, após, as Irmandades de Ordens Terceiras, seguindo-se, no ano de 1785 o estabelecimento do Plano de Beneficência dos Órfãos e Viúvas dos Oficiais de Marinha, segundo a cátedra de Marcelo Barroso Lima Brito de Campos.
Embora não haja consenso entre os estudiosos da evolução da previdência social no Brasil a maioria adota como marco inicial da evolução da legislação previdenciária pátria o Decreto Legislativo nº 4.682 de 24 de janeiro de 1923, que ficou conhecido como Lei Eloy Chaves, em homenagem ao seu grande artífice institucional. É necessário, entretanto, para alcançar os fins deste trabalho, recuarmos no tempo um pouco mais, para buscar na movimentação social que precedeu a citada lei outros fundamentos que viabilizaram a sua inclusão no instrumental legal. Mais do que o diploma legal, interessa-nos a natureza do direito e o elemento principal da sua criação, ou seja, o fim a que se destina.
Costuma-se adotar como parâmetro histórico para designar o início da proteção previdenciária a edição do Decreto n° 4.682, de 24 de janeiro de 1923, a Lei Eloy Chaves, como ficou conhecido o referido instrumento legal. No entanto, em que pese tal parâmetro, as raízes da previdência social no Brasil são anteriores à edição do citado diploma, eis que não é possível isolar-se historicamente seguro social e previdência social, havendo registros históricos de coberturas tipicamente previdenciárias na cobertura de seguro social de algumas categorias de trabalhadores, como também, a Lei Eloy Chaves possui, em muitos aspectos, caráter de seguro social.
Ruy Carlos Machado Alvim (1979, p. 13) cita o Professor Aníbal Fernandes em transcritos de 1978 intitulados “Problemas cruciais da Previdência Social” no qual o insigne professor chama a atenção para o fato de que,
antes dessa lei, outras leis previdenciárias foram editadas, como, por exemplo, a nossa primeira lei acidentária de 1919, que, em sua opinião, se evidencia como uma conquista social dos trabalhadores, lograda com lutas e a partir das bases.
[3] (ALVIM, 1979, p. 13)
Alvim afirma sobre o registro histórico que
A primeira lei de conteúdo nitidamente previdenciário surge ao agonizar do Império: a Lei 3.397, de 24 de janeiro de 1888, relativa à despesa geral da Monarquia para o exercício subseqüente, prevê a criação de uma Caixa de Socorros para os trabalhadores das estradas de ferro de propriedade do Estado. (ALVIM, 1979, p. 13)
Cabe ainda o registro que o Decreto 3.724, de 15 de janeiro de 1919, conhecido como Lei de Acidentes de Trabalho, de natureza tipicamente securitária, vez que consagrou a responsabilidade do empregador de indenizar o empregado por danos sofridos em decorrência de acidente de trabalho, trazia em seu bojo a obrigação de indenizar o risco morte à família do segurado.
A Lei Eloy Chaves, nascida em um contexto de alteração da matriz econômica nacional, encontrou na capacidade de organização de algumas categorias de trabalhadores consideradas importantes no momento histórico em que ocorria a expansão da infra-estrutura, as condições necessárias para sua aprovação. Ferroviários, trabalhadores em docas e outras, eram categorias organizadas de trabalhadores que já demandavam melhor equilíbrio nas relações entre capital e trabalho, pressionando com greves em movimentos que assumiam proporções grandes o bastante para levar o Estado a movimentar-se e criar a legislação protetiva.
Neste contexto o Estado entra pela primeira vez como responsável por parte do custeio, sob a forma de “tarifa” incidente sobre a soma do que excedesse em 1,5% sobre o valor das tarifas cobradas pelas estradas de ferro. Embora de caráter restrito à determinada categoria, tal fato transmuda a essência da relação puramente assecuratória de seguro de acidente de trabalho para previdência social, ainda que a participação do Estado se dê através da tributação. Tal participação já prenunciava a participação tripartite, que viria a tornar-se preceito constitucional com a edição da Constituição de 1934.
Com a expansão do regime de “Caixas” e “Institutos” a um número cada vez mais expressivo de categorias[4] e o surgimento de níveis de proteção social cada vez mais diferenciado, foi aprovado o Regulamento Geral das Caixas de Aposentadorias e Pensões, através do Decreto 26.778 de 14 de junho de 1949, que, entre outras determinações, continha o elenco mínimo de benefícios a serem concedidos aos segurados e beneficiários.
Alvim (1979, p. 24) registra que o período que se estendeu até a queda de Getúlio Vargas em outubro de 1945 foi de expressivas manifestações no sentido de proceder-se à unificação da legislação protetiva e previdenciária, citando como exemplo a criação do Instituto de Seguros Sociais do Brasil. Entretanto, as condições políticas existentes à época não permitiram tal intento. Com a reassunção de Vargas em 1951, nova tentativa de reunificação se deu com a edição do Regulamento Geral dos Institutos, através do Decreto 35.448 de 01 de maio de 1954. Com a morte de Vargas, seguiu-se de imediato a revogação do citado diploma legal.
Após período recheado de conturbações de ordem política, vem a lume a Lei 3.807 de 26 de agosto de 1960, que ficou conhecida como LOPS – Lei Orgânica da Previdência Social já cumprindo a tarefa de unificação da legislação, embora o sistema protetivo só tivesse realizado a unificação em 1966 com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social, o INPS, através do Decreto-Lei 72 de 21 de novembro de 1966.
Fazemos menção, a título ilustrativo, da integração do seguro de acidentes de trabalho ao regime da previdência social, o que ocorreu em 1967 e ainda à criação do Programa de Assistência ao Trabalhador Rural, o Prorural, ocorrida em 1971 e à inclusão ao regime como segurados obrigatórios dos empregados domésticos. Passamos ao largo dos Decretos 77.077 de 24 de janeiro de 1977, que instituiu a Consolidação das Leis de Previdência Social e do Decreto 89.312 de 23 de janeiro de 1984, também com a finalidade de promover nova consolidação da legislação previdenciária, eis que os referidos instrumentos não trouxeram inovações merecedoras de registro. Nesse ponto já se encontrava o país em nova realidade social e política, e, às portas de uma Assembléia Nacional Constituinte, da qual emerge o novo Contrato Social da nação brasileira, como coroamento das expectativas da maioria de seu povo de deixar para trás o período iniciado em 1964, fazendo o país retornar ao leito democrático e escrever para a sociedade brasileira, entre outros avanços da cidadania, os princípios da Seguridade Social.
Como resultado dessa expectativa, avançou-se na direção de se fundar uma nova relação entre o cidadão e o Estado. Estruturou-se o Estado Nacional em novas bases, tendo como princípios fundamentais, entre outros a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho e ainda, como um dos objetivos fundamentais da república, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, restando consignado pelo art. 193 da Carta o mandamento de que a nova Ordem Social instituída tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais. A partir desse comando desdobraram-se os princípios e objetivos da seguridade social, determinando que o Estado Nacional deva buscar aliado com seus cidadãos, no sentido mais amplo da palavra, a construção e consolidação do Welfare State, ou, Estado do bem-estar social.
II – UMA REFERÊNCIA SOBRE A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO:
A possibilidade de ocorrência da incapacidade para o trabalho é um dos pilares de sustentação do nosso regime previdenciário, e obrigatoriedade de cobertura da situação de invalidez – permanente ou temporária - foi elevada à categoria de mandamento constitucional não por acaso. A inscrição de tais fundamentos a nortear, não apenas a forma de organizar a previdência social como também, e principalmente, os objetivos a serem buscados pela administração pública para cumprir a ordem constitucional, não se fizeram por simples inscrição formal no texto legal, refletindo, outrossim, a longa e difícil evolução do sistema de proteção social em uma sociedade heterogênea e complexa como o é a brasileira.
Dos aspectos de natureza eminentemente comercial dos primeiros instrumentos que visavam à proteção da mão de obra, ao direito insculpido no capítulo próprio da carta constitucional em vigor há toda uma evolução social da legislação protetiva, cuja interpretação não se esgota com a simples leitura dos artigos da Lei 8213 de 1991, como muitas vezes se quer fazer crer. Como se fora ela, a simples leitura, a forma adequada neste caso, de se interpretar o direito previdenciário.
Um dos debates que sempre provoca discussões apaixonadas entre aqueles que têm na lida com a ciência do Direito sua atividade, diz respeito à interpretação da norma jurídica. Não é o escopo deste trabalho debater ou aprofundar as discussões existentes quanto à hermenêutica jurídica, porém, é necessário no caso presente uma pequena inserção nesta seara, - ainda que com as limitações antes alertadas - vez que é na interpretação que se dá à questão da incapacidade no contexto do Direito Previdenciário, e que está a nosso ver a chave diretamente relacionada ao deslinde da questão.
Para alguns expoentes da hermenêutica jurídica tradicional a norma jurídica traz em si um sentido verdadeiro, que o intérprete deve alcançar mediante o emprego de métodos de interpretação. A partir daí, surge a primeira divergência. Para alguns desses teóricos, como Carlos Maximiliano (1994, p. 1), a atividade interpretativa é preliminar à aplicação da norma ao caso concreto. Para ele interpretar é
descobrir e fixar o sentido verdadeiro da regra positiva; e logo depois, o respectivo alcance, a sua extensão. Em resumo, o executor extrai da norma tudo o que na mesma se contém: é o que se chama interpretar, isto é, determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito. (MAXIMILIANO, 1994, P. 1)
Para outros autores como Washington de Barros Monteiro (2000, p. 83) só há necessidade de interpretação quando o texto legal é confuso ou defeituoso. Para Monteiro “a lei quase sempre é clara, hipótese em que descabe qualquer trabalho interpretativo”. (MONTEIRO, apud STRECK, 2000, p. 83)
Há ainda, neste campo da hermenêutica jurídica tradicional uma outra questão a dividir seus estudiosos. O que deve nortear o intérprete? A voluntas legis ou a voluntas legislatoris?A vontade da lei ou a vontade do legislador? Por este caminho poderíamos seguir a discutir os pressupostos de cada uma destas posições ou ainda os paradigmas filosóficos sobre os quais se assentam, porém, embora bastante instigante o debate neste campo, é necessário avançar um pouco mais a fim de balizarmos o campo de interpretação que norteará o alcance do nosso objetivo. Desta forma, é nas obras de Sacha Calmon Navarro Coêlho (2003, p. 139) e Paulo de Barros Carvalho (2005, p. 95) que encontramos a enumeração dos métodos[5] que nos parecem suficientes para o perfeito entendimento deste campo da interpretação jurídica nos termos à que se propõem o presente trabalho.
Outro campo na interpretação jurídica a ser observado com a finalidade de ampliar as possibilidades de melhor entender a aplicação da norma que examinamos diz respeito à denominada hermenêutica jurídica contemporânea. Também sobre esta trataremos rapidamente.
A busca da superação da hermenêutica tradicional se dá a partir do entendimento da impossibilidade de obtenção da verdade absoluta cujo conteúdo estaria, para os tradicionalistas, contido na norma. Hans Kelsen (1987, p. 366), talvez seja o mais citados dos teóricos da hermenêutica jurídica contemporânea, vez que ao admitir, ainda que em um primeiro momento, que “... a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções...”, Kelsen rompe com o paradigma da interpretação verdadeira, calcada na filosofia da consciência. Entretanto, Kelsen não avança no sentido da solução para a questão das várias interpretações possíveis. Pelo contrário, na segunda edição do seu Teoria Pura do Direito, Kelsen (1987, p. 369) embora reconheça a impossibilidade de apontar-se uma única interpretação verdadeira, sustenta que “verdadeira” será aquela interpretação adotada pelo órgão de interpretação autêntico, ou seja, o órgão de aplicação do direito.
Abandonados os paradigmas da filosofia da consciência pela hermenêutica, debruçam-se os teóricos na busca de novos paradigmas, sejam estes fundados em estudos lingüísticos e semióticos, seja na análise da norma a partir da significação construída pelo interprete, entre outras abordagens.
Poderíamos nesta toada avançar neste campo de imensas discussões doutrinárias, discorrendo sobre outras visões existentes sobre a hermenêutica jurídica, porém, chegamos até Kelsen pois não temos aqui a intenção de elaborar uma obra sobre hermenêutica, mas é necessário que, com a intenção de melhor delimitar outras interpretações, deixemos desde logo consignado que, embora a realidade esteja quase sempre a demonstrar a maestria do ensinamento de Kelsen sobre a “interpretação verdadeira”[6], esta decorre também do resultado dos diversos componentes evolutivos do direito interpretado, entre eles, os aspectos históricos, sociais, econômicos, só para citar alguns. Não é adequada, desta forma, a interpretação literal dos artigos da Lei 8213 que tratam concessão do auxílio-doença, eis que estes não existem por si só, refletem, outrossim, parte do complexo evolutivo do direito previdenciário.
Retornemos, após esta breve digressão à questão da incapacidade, eis que, este é ao que parece, o principal aspecto a ser estudado uma vez que o instrumento administrativo denominado “alta programada” tem na definição do aspecto temporal da incapacidade do segurado seu elemento definidor de “até quando” o direito será exercido.
A Carta Constitucional de 88, refletindo a evolução social até então conquistada, incluiu na ordem social a ser observado pelo Estado nacional o conceito de seguridade social. Não se trata, porém, como pode parecer aos mais desavisados, de um conceito meramente formal. Tal conceito reflete toda a evolução da relação obrigacional instituída entre o Estado e seu nacional, que consiste na obrigação do Estado de realizar ações capazes de assegurar os direitos relativos à saúde, previdência e assistência social. Firmado o conceito principal dele emerge, além da saúde e da assistência social, o conceito de previdência social, do qual emergem as relações obrigacionais entre o Estado e o destinatário do direito: o segurado do sistema previdenciário instituído pela Carta Constitucional.
Não se trata, como se vê, de mera formalidade do legislador constituinte. Ao enfeixar as ações devidas pelo Estado aos seus nacionais, o legislador informa que a ordem social assenta-se sobre os objetivos do bem-estar e da justiça social. Neste rumo, ao definir à que se destina a seguridade social, inclui na parte relativa à Previdência Social que esta atenderá, nos termos da lei, à cobertura de algumas situações, entre elas, a cobertura nos casos de invalidez.
III- A INCAPACIDADE
A incapacidade no contexto do direito previdenciário não possui os mesmos contornos e os mesmos parâmetros de delimitação que lhes dá a medicina, tomada aqui no conceito lato sensu.
A incapacidade no direito previdenciário pátrio é instituto jurídico norteador da concessão de algumas espécies de benefícios. É a impossibilidade de prover o próprio sustento através do trabalho, que se apresenta de forma temporária ou permanente. É, como se vê, conceito mais amplo do que o conceito que lhe pode ser dado pela medicina. A incapacidade não é para o direito previdenciário a impossibilidade de exercer determinada atividade em função de determinada patologia de que foi acometido o segurado ou ainda de acidente de que este tenha sido vítima. A incapacidade é para o direito previdenciário a impossibilidade de prover o próprio sustento. A patologia ou os efeitos decorrentes do acidente são partes a serem analisadas no todo que é a avaliação da capacidade laboral, não são e não podem ser os elementos finais da análise. Se assim fora, desnecessária seria a inclusão do conceito de pré-existência de determinadas patologias, ou ainda, a recuperação ou readaptação profissional, que tomamos aqui simplesmente como exemplos do alcance que o Direito Previdenciário dá ao conceito e as decorrências daí advindas.
O instituto jurídico incapacidade possui perante a previdência social pátria pelo menos duas dimensões: uma relacionada ao aspecto jurídico do instituto incapacidade e outra relacionada a aspectos físicos, que podem relacionar-se ao próprio segurado ou aos dependentes deste. Apenas para efeitos de melhor entendimento, denominaremos de própria a incapacidade relacionada ao segurado da Previdência e de imprópria a relacionada ao seu dependente.
A dimensão relacionada aos aspectos jurídicos da incapacidade é aquela dimensão que diz respeito à evolução histórica da incapacidade enquanto condição infortunística genérica, aplicável a qualquer dos abrangidos pela Seguridade Social e capaz de gerar a obrigação do Estado de prestar a contrapartida de natureza previdenciária ou social. Nesta dimensão a incapacidade possui característica decorrente da evolução social, tendo sido, por esta natureza, objeto do Contrato Social e desta forma inscrita no capítulo próprio pelo constituinte originário, gerando ao Estado a obrigação de natureza previdenciária ou de assistência social.
A dimensão relacionada ao segurado da Previdência de modo próprio diz respeito à condição física ou mental na qual aquele se encontra, de duração temporária ou permanente, e que pode gerar a obrigação do órgão gestor da previdência social de conceder a prestação previdenciária correspondente. De outra forma, a dimensão relacionada ao beneficiário do segurado, aqui denominada de imprópria, diz respeito à condição física ou mental que deve possuir o filho ou o irmão maiores para serem incluídos ou permanecerem como beneficiários do segurado.
A Lei 8213/91, obedecendo ao mandamento constitucional, elenca em alguns dos seus dispositivos situações nas quais o instituto da incapacidade caracteriza-se como fato jurídico capaz de gerar direito ao segurado de pleitear perante a Previdência Social a cobertura que lhe é devida. Desta forma, a incapacidade não é tomada aqui apenas na sua dimensão relativa ao segurado, embora tal interpretação seja possível se utilizada a técnica hermenêutica de interpretação literal à qual nos referimos anteriormente. A incapacidade é aqui tomada primeiramente na sua dimensão histórica de proteção ao infortúnio gerado pela impossibilidade de prover o próprio sustento e, de forma decorrente, na dimensão relativa ao segurado nas dimensões antes denominada própria ou imprópria. Satisfeitas outras condições previamente determinadas pela lei, a incapacidade será capaz de gerar a situação jurídica correspondente.
Desta forma, a existência da incapacidade é condição necessária para a geração de alguns benefícios como é o caso da aposentadoria por invalidez prevista no artigo 42 da citada lei, do auxílio doença previsto no art.59, entre outros.[7]
Como se vê, a incapacidade possui perante o sistema previdenciário vigente dimensões que vão além do segurado. E assim é, porque possui ela, a incapacidade, características que vão além da dimensão de estado inerente e vinculado à patologias ou outras situações avaliáveis apenas do ponto de vista médico. Se não fora assim, não seria ela elevada pelo constituinte originário à condição a que nos referimos anteriormente. Veja-se, por exemplo, o instituto jurídico da incapacidade com dimensão jurídica suficiente para gerar o direito de dependência do segurado, oponível perante a previdência, do filho inválido ou do irmão inválido antes mencionado e que podem gerar benefício previdenciário. Casos há ainda, que a incapacidade gera direitos para além da dimensão natural do segurado, como é o caso do direito à pensão decorrente de falecimento de segurado devida a dependente inválido.
Na mesma linha trilha Russomano, (1981, p. 135) que, ao conceituar o instituto previdenciário da aposentadoria por invalidez releva um dos aspectos da incapacidade: aquela que revestida da característica da permanência e sem perspectiva de reabilitação, é capaz de impedir ao segurado o exercício de atividade capaz de lhe garantir a subsistência.
Sua avaliação não pode, desta maneira cingir-se a apenas um aspecto, ainda que calcada nas melhores intenções. Embora de natureza relevante à espécie de benefício este aspecto não é o único a ser avaliado. Não é a incapacidade perante o sistema de seguridade pátrio uma simples condição física, ainda que avaliável nesta dimensão. É uma situação jurídica capaz de gerar direitos.
A incapacidade é, para o direito previdenciário, um estado no qual, encontrando-se o segurado, é capaz de gerar efeitos jurídicos. Não se trata de simples condição física ou fisiológica em que se encontra o segurado. A incapacidade física leva à ocorrência do instituto jurídico em toda a sua dimensão histórico-social, o qual por sua vez gera os efeitos de direito que lhes são próprios, como são quaisquer outros fatos jurídicos: o surgimento de determinado direito a que corresponde determinada obrigação. Constatada a incapacidade, cria-se o direito do segurado a ver observado pela Previdência os efeitos daí decorrentes e que são, a partir daí, direitos do segurado que geram obrigações para a Previdência.
Criada esta condição jurídica, a incapacidade adquire status normativo a gerar direitos e obrigações, não pode assim, ser disponibilizada pelas partes com natureza diversa daquela com que foi instituída pelo ordenamento, sem gerar efeitos jurídicos entre as mesmas, ou estaríamos em face de desequilíbrio ou de norma jurídica a que teria sido negado efeito.
E qual é a natureza desta incapacidade para o direito previdenciário? É a natureza capaz de impedir ao segurado a possibilidade de manter, a partir do exercício do trabalho remunerado, a própria subsistência. Não há dúvidas que a avaliação da natureza do direito está diretamente vinculada a um dos pólos da relação jurídica, não podendo, portanto, a outra parte dispor sobre ela ao seu alvedrio, sem que se fira a relação jurídica. Não se trata como pode parecer à primeira vista, de discussão sobre a condição de existência ou não da incapacidade. A ofensa ao direito decorre, isto sim, da disposição por alien de conteúdo de direito alheio. Ao definir previamente condição cuja natureza jurídica não se encontra no campo da relação jurídica dentro seu universo, a parte que assim procede desequilibra a relação jurídica e o Direito.
Embora louvável do ponto de vista administrativo, uma vez que a intenção expressa pelo administrador público ao motivar a razão da implantação do sistema a que popularmente se denominou “Alta Programada”, foi a intenção de agilização dos procedimentos e maior segurança na administração de determinadas espécies de benefícios, tal intenção não é suficiente para subverter direitos de outrem, e, menos ainda, direitos historicamente consolidados.
O instituto da incapacidade, tanto em sua dimensão jurídica como em sua dimensão relacionada às condições físicas do segurado ou do dependente não pode ser objeto de disposição pelo gestor da previdência como se fora uma mera questão administrativa, a uma porque expressa uma condição histórica atinente à geração da proteção previdenciária não tendo, portanto, natureza administrativa e, a duas porque tal condição encontra-se na esfera de direitos de outrem e não do gestor, por melhor intencionado que este esteja.
Cabe, entretanto, aqui uma ressalva. A pequena argumentação antes expendida cinge-se à interpretação do instituto nos estreitos limites em que este se encontra inscrito no universo jurídico vigente. Não nos parece que a intenção do órgão gestor do sistema previdenciário seja, entretanto, descabida, vez que é notório o crescimento de concessão de benefícios que tem na incapacidade um dos fundamentos, mormente em períodos de altas taxas de desemprego. O equilíbrio do sistema previdenciário atende a mandamento constitucional inscrito no artigo 201 da Carta, e, cabe não só ao Estado zelar pelo seu cumprimento, mas a toda a sociedade. Ocorre, entretanto, que o equilíbrio de que fala o citado mandamento constitucional não pode ser obtido a qualquer custo ou a qualquer título que não seja o constitucionalmente permitido. É necessário que este seja obtido ou mantido, nos limites legais, e, neste caso, não há permissivo constitucional para tanto.
IV - CONCLUSÃO:
Na forma como atualmente se apresenta, a chamada “Alta Programada” fere direitos consolidados, uma vez que altera sem previsão legal, a natureza de instituto jurídico, e invade direito alheio ao previamente fixar o prazo de cessação da incapacidade e operar a cessação do benefício de forma unilateral.
O prazo aberto ao segurado para insurgir-se e requerer a avaliação da incapacidade não tem o condão de restaurar a legalidade da ação vez que a ilegalidade antes perpetrada já incluiu no mundo jurídico ato defeituoso, pois, em não sendo possível à administração pública atuar à margem do permissivo legal, a manifestação ulterior do administrado queda inerte, viciado que está o ato da ilegalidade originária.
É possível, entretanto, definir em lei o caráter administrativo da previsão de duração da incapacidade e os respectivos prazos a nortearem a ação administrativa do órgão gestor ressalvando, em qualquer caso, o direito ao segurado de insurgir-se contra o termo do benefício na data fixada e de exigir a avaliação na data prevista para cessação vinculando-se a decisão à realização da avaliação. Tal providência, desta forma, seria capaz de permitir à administração o melhor gerenciamento dos benefícios, como, aliás, é sua obrigação constitucional, ao tempo em que respeitaria o ordenamento jurídico e os avanços tão duramente conquistados em matéria de proteção previdenciária.
Instado a posicionar-se sobre o assunto o Judiciário reagiu inicialmente de forma a preservar o direito do segurado de ver procedido à avaliação da incapacidade, porém, ao que parece, o argumento de natureza administrativa utilizado pela autarquia responsável pela gestão do sistema é dotado também de razoável peso aos olhos do julgador que quedou inerte em sua obrigação de resolver o conflito, a partir de situação judicial habilmente criada pelo gestor do sistema.
A redução do conceito de incapacidade aos aspectos que lhe dá a autarquia no método que denomina de “alta programada” é revestida de natureza meramente administrativa, pois não condiz com o conceito jurídico que lhe deu o constituinte originário e, ainda menos com a evolução do conceito de seguridade social até então construído. É possível que estejamos nos valendo mais uma vez da lição de Kelsen, à frente de novos paradigmas em construção na evolução dos conceitos de seguridade social. Talvez estejamos festejando Weber: fazendo principal a máquina burocrática e não o homem.
REFERÊNCIAS
ALVIM, Ruy Carlos Machado. Uma história crítica da legislação previdenciária brasileira. Revista do Direito do Trabalho, São Paulo, 1979, p. 13.
CARVALHO, Paulo B. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 95.
COELHO, Sacha C. N. Teoria Geral do Tributo, da interpretação e da exoneração tributária. São Paulo: Dialética, 2003, p. 139.
FERREIRA, Jorge e Al,As Esquerdas no Brasil – A formação das Tradições. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 366.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 1).
RUSSOMANO, Mozart Victor. Comentários à Consolidação das Leis da Previdência Social. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p. 135.
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p.83.
* Advogado no Distrito Federal
Especialista em Direito Público
E-mail: mauriciommendes@gmail.com
[2] O termo “Alta Programada” refere-se à forma como ficou conhecida a aplicação da cessação pré-definida da incapacidade como elemento motivador da cessação do benefício, a partir edição pelo gestor do sistema previdenciário da Orientação Interna Conjunta nº 01 Dirben/PFE, de 13 de setembro de 2.005, e posteriormente mantido com base no artigo 1º, do Decreto nº. 5.844, de 13 de julho de 2.006, que alterou o artigo 78, do Decreto nº. 3.048/99 – Regulamento da Previdência Social.
[3] Cabe o registro de que a citada lei foi apresentada e apreciada em um contexto de intensa movimentação social no qual o movimento operário, com forte influência anarco-sindicalista, realizou grandes greves em diversas capitais, entre elas Rio de Janeiro e São Paulo, tendo sido o ano de 1917 - ano em se apresentou o projeto - um ano de intensas movimentações contra a carestia e intensa repressão ao movimento anarquista.
[4] Ver a respeito o trabalho de Edilene Toledo sobre o assunto em “As Esquerdas no Brasil – A formação das Tradições” de Jorge Ferreira e outros.
[5] Os autores nas respectivas obras enumeram entre os diversos métodos existentes o método literal, o método histórico, o lógico, o teleológico, e o sistemático.
[6] Hans Kelsen reconhece a impossibilidade de apontar-se uma única interpretação verdadeira e, como solução propõe que a “interpretação verdadeira” será aquela adotada pelo intérprete autêntico, para ele, o “órgão de aplicação do direito” (Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 369)
[7] Art. 42. A aposentadoria por invalidez, uma vez cumprida, quando for o caso, a carência exigida, será devida ao segurado que, estando ou não em gozo de auxílio-doença, for considerado incapaz e insusceptível de reabilitação para o exercício de atividade que lhe garanta a subsistência, e ser-lhe-á paga enquanto permanecer nesta condição.
§ 1º A concessão de aposentadoria por invalidez dependerá da verificação da condição de incapacidade mediante exame médico-pericial a cargo da Previdência Social, podendo o segurado, às suas expensas, fazer-se acompanhar de médico de sua confiança.
Art. 59. O auxílio-doença será devido ao segurado que, havendo cumprido, quando for o caso, o período de carência exigido nesta Lei, ficar incapacitado para o seu trabalho ou para a sua atividade habitual por mais de 15 (quinze) dias consecutivos.