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Resumo:
Ato infracional e Conduta Moralmente Reprovável
Texto enviado ao JurisWay em 14/05/2015.
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Ato infracional e Conduta Moralmente Reprovável
Por Carlos Eduardo Rios do Amaral
Advirto ao leitor, o assunto deste pequeno apontamento raramente será encontrado nos manuais e cursos de Direito. Trata-se de um lado sombrio e macabro das desventuras vivenciadas por juízes de direito, promotores de justiça e defensores públicos titulares das varas da infância e da juventude com atribuição para processo e julgamento de adolescentes em conflito com a lei penal.
Tradicionalmente, para apuração do executor do ato infracional nosso Direito se situa, regra geral, entre as figuras do autor, coautor e partícipe do delito. Uma vez identificados todos responderão pelo ato ilícito e, ao final, levando-se em consideração uma diversidade de outros elementos do processo, será aplicada a melhor e mais adequada medida socioeducativa para cada adolescente. Ainda, temos as figuras da autoria colateral e as concausas diversas que, de toda sorte, também não isentarão seu agente da ação socioeducativa.
Acontece que, não raras vezes, nos deparamos com a atípica conduta moralmente reprovável do adolescente representado. Senão vejamos: o menor A é convidado pelos menores B, C, D e E para fumar maconha e cheirar cocaína o dia inteiro na praia. Quase no fim da tarde, B, encorajado pela droga e para “ganhar moral” entre todos, resolve matar seu desafeto F. C e D zombam de B, dizendo que o mesmo é “um fraco”, que não teria coragem de matar ninguém. A, indiferente a tudo, continua fumando seu cigarro de maconha passivamente. B se levanta, com sua arma de fogo municiada escondida na cintura e, decididamente, vai ao encalço de seu inimigo de tráfico F para matá-lo, mas não sem antes convidar seus amigos A, C, D e E. C, D e E dizendo-se cansados de matar pessoas preferem continuar na praia fazendo usado de drogas, enquanto A curioso para saber como é a cena de uma pessoa morrendo a tiros resolve acompanhar B.
Vamos a outro exemplo: o menor A em sua comunidade admira os traficantes B, C, D e E, todos também menores. Na visão de A os menores B, C, D e E fazem o “maior sucesso” com as meninas do Bairro, fornecendo a estas drogas e uma vida de ostentação e sexo prematuro sem limites. A decide abandonar a Escola, contrariando seus pais e passa a andar em companhia de B, C, D e E, para tentar ganhar algum prestígio com as garotas do Bairro. Passadas algumas semanas, vislumbrado, A decide morar na boca-de-fumo de seus amigos. Passa a tirar várias fotos nas redes sociais ostentando as drogas, as armas de fogo de grosso calibre e as diversas cédulas de cem reais de propriedade de seus amigos B, C, D e E.
Em ambos os exemplos, o mais iniciante ou inexperiente aluno do curso de Direito terá a acertada convicção de que A não cometeu crime algum. Não é autor, coautor e nem partícipe de nenhum ato infracional. Nos exemplos acima, a conduta de A, apesar de moralmente reprovável, é atípica, não encontra ressonância na lei penal (tipicidade e legalidade estritas).
Sem aderir à execução e consumação do ato infracional, A movido pela pouca idade e inexperiência de vida, deseja apenas estar em uma “vida louca”. Não deseja estar na companhia de seus pais, detesta frequentar a escola e a igreja, quer apenas uma identificação maior com a tribo que entender fazer maior sucesso na sua comunidade, que atende aos seus anseios do momento.
Por óbvio, em brevíssimo tempo, A também estará sendo autor, coautor e partícipe de diversos atos infracionais, muitos de natureza hedionda.
Mas, no processo e julgamento da ação socioeducativa não se pode embaralhar a natureza das coisas, ignorar a realidade de vida de nossas crianças e adolescentes, notadamente as da periferia. O operador do Direito insensível e apático não é convidado para as varas da infância e da juventude com competência para processo e julgamento de adolescentes em conflito com a lei penal.
É preciso ter em mente que as varas especializadas da criança e do adolescente em conflito com a lei não lida com adultos imputáveis. A regra nessas varas é encontrar jovens de 12, 14, 16 anos iniciando-se no mundo do crime, são verdadeiros estreantes.
Muitas vezes, numa operação policial rápida e inesperada, o menor poderá se encontrar na mesmíssima situação vivenciada pelo personagem A dos dois exemplos acima. Claro, terá que explicar que focinho de porco não é tomada em juízo. É a velha máxima de que quem anda com porco farelo come. Apesar de tudo, sua conduta moralmente reprovável, não constituindo crime, não autorizará a aplicação de qualquer medida socioeducativa. Nem sequer é o caso de remissão. A deve mesmo ser absolvido, sem prejuízo de se ver processado numa vara da infância e da juventude com competência cível para aplicação da medida de proteção (e não socioeducativa!) cabível ao seu caso concreto.
Aqui, abro um parêntese. O personagem A dos exemplos é o favorito para carregar em suas costas os delitos praticados pelos outros. Se no seu interrogatório não chamar para si a responsabilidade dos crimes, delatando os verdadeiros culpados, será certamente assassinado no caminho do fórum para a sua casa. Até mesmo silenciar-se em juízo pode ser perigoso para o primário A, pois seus reincidentes amigos não querem se ver processados e condenados à provável internação de três anos. Com alguma boa chance de receber uma medida socioeducativa de meio aberto, dado não possuir passagens anteriores, deve levar consigo toda a culpa para manter-se vivo.
O domínio das máfias do tráfico de drogas e da comercialização de armas de fogo sobre as comunidades carentes, aliada à falta de qualquer política pública efetiva e concreta de inclusão e redução das desigualdades sociais, vêm recrutando todos os dias uma massa de crianças e adolescentes para o mundo da criminalidade, da luxúria e da imoralidade.
Para se compreender melhor o abismo existente entre o crime e a conduta moralmente reprovável sob o aspecto sociológico, recomendo se assistir ao filme “Pixote, a lei do mais fraco”, um filme brasileiro de 1980, dirigido pelo festejado diretor Hector Babenco.
O ator Fernando Ramos da Silva, que interpretou o personagem-título, tempo depois do êxito do filme, voltou à sua vida de sempre, vivendo num ambiente de total miséria. Chegou a tentar seguir a carreira de ator, ingressando em famosa emissora com a ajuda de prestigiado escritor, porém, foi demitido por ser incapaz de decorar os textos, já que era semialfabetizado. Devido à influência dos irmãos, retornou à criminalidade, sendo supostamente assassinado por policiais em 1987. A rápida trajetória de Fernando foi contada pelo diretor José Joffily, em seu filme “Quem Matou Pixote?”.
O juiz jamais poderá digitar uma letra sequer do texto de sua sentença sem se colocar dentro da vida e das experiências de vida de uma criança e de um adolescente miseráveis.
O juiz da infância, pelos anos de experiência de seu ofício, deve saber exatamente dimensionar o que seja não possuir um registro civil paterno, jamais ter sido amamentado no peito pela mãe, nunca ter sido embalado e ter recebido um carinho afetuoso dos pais, ser espectador de cenas cotidianas de uso imoderado de álcool e drogas, violência doméstica e incesto. O modo de vida do pobre de tudo e do abandonado à própria sorte, a omissão eterna do Poder Público e das elites, sempre devem servir de fundamento para as decisões judiciais, para a análise do comportamento e atitudes da pessoa humana ainda em fase de desenvolvimento em conflito com a lei.
Ato infracional ou conduta moralmente reprovável. Estejamos sempre alerta a essa nuance, por tênue que seja a diferença entre eles.
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Carlos Eduardo Rios do Amaral é Defensor Público do Estado do Espírito Santo
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