DECISÃO:
Processo: ACR 2001.38.03.004339-8/MG; APELAÇÃO CRIMINAL
Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL TOURINHO NETO
Revisor: DESEMBARGADOR FEDERAL OLINDO MENEZES
Órgão Julgador: TERCEIRA TURMA
Publicação: 02/06/2006 DJ p.65
Data da Decisão: 19/05/2006
Decisão: A Turma, por unanimidade, deu provimento à apelação.
EMENTA: PENAL E PROCESSUAL PENAL. DESCAMINHO. CONTRABANDO. ART. 334 DO CP. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICAÇÃO. MERCADORIA APREENDIDA DE VALOR INEXPRESSIVO. LEI 10.522/02.
1. Em face do advento de regramento que manifesta o desinteresse da Receita Federal com arrecadação de determinados valores (art. 20 da MP 2.095-76, de 13/06/01, convertida na Lei 10.522, de 19/07/02), cabível é o princípio da insignificância na esfera penal, ainda que se trate do crime de contrabando.
2. A Lei 10.522/02 estabeleceu o valor consolidado a fundar as execuções fiscais da União em 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais). Sendo a mercadoria apreendida de valor inferior, como constatado pelo Laudo de Exame Merceológico, aplica-se, ao caso, o princípio da insignificância.
3. Apelação provida.
ANÁLISE DA DECISÃO
Trata o acórdão transcrito de crime de descaminho, consistente no transporte de cigarros ilegalmente introduzidos no país, desacobertado dos documentos fiscais pertinentes.
Durante a instrução processual ficou demonstrado que o acusado praticava a conduta prevista no art. 334 habitualmente, realizando constantes visitas ao Paraguai. O laudo de exame das mercadorias comprovou serem as mesmas avaliadas em R$2.470,00 (dois mil quatrocentos e setenta reais), senão vejamos:
“Consta dos autos que o inculpado tinha por hábito buscar pacotes de cigarros no Paraguai para depois revendê-los no comércio local de Patrocínio. As mercadorias foram devidamente apreendidas e, consoante o laudo de exame merceológico indireto, elaborado pelo Instituto Nacional de Criminalística da Polícia Federal, avaliadas em R$ 2.470,00 (dois mil, quatrocentos e setenta reais)”.
Conforme consta do acórdão transcrito, o acusado foi absolvido das imputações constantes da denúncia em virtude da aplicação do princípio da insignificância. Os eméritos desembargadores entenderam pela possibilidade de aplicação ao caso da Lei n° 10.522/02, que trata do interesse da Fazenda Pública na execução de dívidas tributárias. Logo, sendo o valor das mercadorias apreendidas inferior ao montante mínimo que interessa à proposição de ação fiscal, a conduta do agente foi julgada insignificante.
Dentro da teoria do crime, a verificação da insignificância da conduta do agente impõe a sua absolvição por ausência de tipicidade. Afinal, a tipicidade formal, ou seja, a adequação da conduta perpetrada pelo agente à descrição abstrata do tipo penal não exaure o conceito de tipicidade. Isso porque o Direito Penal é a ultima ratio, o instrumento utilizado para defender os bens jurídicos mais importantes das condutas consideradas mais lesivas. Se o comportamento do agente é de tal modo insignificante que não se pode falar em ofensa ao bem jurídico tutelado pela norma, tem-se que, materialmente, o tipo penal não se perfez. Assim, entendendo a tipicidade não apenas sob o prisma formal, mas de forma conglobada, torna-se mister a absolvição do agente nos chamados crimes de bagatela.
Contudo, data venia, não nos parece acertada a aplicação do princípio da insignificância ao caso em comento.
Mas, antes disso, deve-se ressaltar que há um pequeno equívoco técnico na utilização da expressão “contrabando” ao delito cometido pelo agente. De fato, tanto o contrabando quanto o descaminho são delitos que encontram previsão no art. 334 do Código Penal, sendo, inclusive, apenados da mesma forma. Ocorre que tais figuras não se confundem, tendo já há muito a doutrina elaborado a sua separação, senão vejamos:
“Duas são as figuras típicas que estão previstas na definição deste delito, a primeira correspondente ao contrabando, e, a segunda, ao descaminho: 1. Importar ou exportar mercadoria proibida; 2. ilidir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, saída ou pelo consumo da mercadoria”. (Fragoso, 1991).
Assim, o que caracteriza a figura do contrabando é o fato da mercadoria introduzida no país ser proibida, o que se daria, por exemplo, no caso da apreensão de remédios de efeitos abortivos. O que importa para a configuração do descaminho, ao contrário, é que se evite o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada ou saída do país de mercadoria não proibida. Logo, como no caso o objeto material do crime eram pacotes de cigarros, mercadoria não proibida no Brasil, tem-se que o delito configurado seria o de descaminho, e não o de contrabando, conforme constante da ementa.
Entretanto, o cerne da controvérsia que paira em torno do julgado se encontra na aceitação da possibilidade de aplicação ao caso concreto do princípio da bagatela. Importante salientar, ab initio, que a aplicação de tal princípio é admitida pelo ordenamento jurídico brasileiro, e que o seu reconhecimento se amolda às exigências de um Direito Penal mínimo e garantista, essencial para a construção e manutenção das liberdades dentro de um Estado Democrático de Direito. Ocorre que a insignificância deve ser aplicada com parcimônia, de forma excepcional, e após analisadas todas as especificidades do caso concreto. A doutrina alerta sobre o perigo que o entendimento equivocado em torno do princípio da bagatela pode trazer para o ordenamento jurídico: “Ainda aqui, porém, convém advertir para a grande imprecisão desses critérios, o que pode atingir gravemente a segurança jurídica”. (Prado, 2002).
No caso em análise, os julgadores entenderam que a introdução de R$2.470,00 (dois mil quatrocentos e setenta reais) em mercadoria no país era conduta insignificante, e que, portanto, não afetaria o bem jurídico tutelado pela norma, em aplicação analógica da Lei n° 10.522/02, que trata de feitos tributários. Logo, são três os equívocos constantes dessa decisão.
O primeiro deles se refere ao bem jurídico tutelado pela norma do art. 334 do Código Penal. Isso porque, apesar do não pagamento do tributo no crime de descaminho afetar a ordem tributária, não é esse o bem protegido pela norma penal. O tipo do art. 334 encontra previsão dentre os crimes contra a Administração Pública, de forma que não se protege apenas o Erário, mas também a indústria nacional, a economia nacional, e a própria moralidade pública.
A segunda imprecisão constitui uma verdadeira decorrência da primeira. Afinal, não se tratando de delito contra a ordem tributária, não há que se falar em aplicação analógica da Lei n° 10.522/02. Note-se que não se faz ainda um juízo de valor acerca da aplicação do princípio da bagatela. Mas o fato é que uma norma tributária, cuja aplicação no âmbito penal vem sendo bastante criticada, não poderia de forma alguma ser utilizada analogicamente para abranger delitos cujo bem tutelado é a Administração Pública, e não a ordem tributária. Mais que isso, o art. 20, caput, da Lei nº 10.522/2002 se refere ao ajuizamento da ação de execução ou arquivamento sem baixa na distribuição, não ocorrendo, pois, a extinção do crédito, daí não se poder invocar tal dispositivo normativo para regular o valor do débito caracterizador de matéria penalmente irrelevante.
Todavia, o último equívoco pode ser considerado como o mais importante dos já citados. Isso porque a insignificância de uma conduta somente pode ser valorada a partir da consideração global da ordem jurídica, nunca de maneira isolada. O próprio Zaffaroni, um dos maiores expoente da idéia de tipicidade conglobante, é quem ensina que “a insignificância só pode surgir à luz da função geral que dá sentido à ordem normativa e, consequentemente, a norma em particular, e que nos indica que esses pressupostos estão excluídos de seu âmbito de proibição, o que resulta impossível de se estabelecer à simples luz de sua consideração isolada” (Zaffaroni, 1996).
Ora, o crime de descaminho não importa apenas em um desvio de valores dos cofres públicos. Suas conseqüências para a sociedade e para ordem jurídica em geral são das mais terríveis possíveis. As empresas nacionais perdem em competitividade; ocorre fuga de investimentos estrangeiros; desestímulo ao empreendedorismo nacional; “quebra” de empresas; perda de credibilidade no poder de fiscalização estatal. Isso para não se falar no incentivo gerado pela impunidade. Afinal, o criminoso habitual, como o que fora julgado no caso em comento, poderá ir a outros países, como o Paraguai, e buscar até R$2.500,00 (dois mil e quinhentos reais) em mercadorias, tendo plena convicção de sua absolvição. Ou seja, tem-se aí um verdadeiro fator criminógeno. Vale mais a pena descaminhar e contrabandear mercadorias que valem R$2.500,00 (dois mil e quinhentos reais) que trabalhar 8hs por dia para auferir uma renda de R$350,00 (trezentos e cinqüenta reais).
Direito Penal mínimo e garantista não se confunde com ingenuidade. Os delitos mais sérios, que causam uma repercussão negativa para o Brasil de tal magnitude que afetam a ordem econômica e social como um todo, inclusive a longo prazo, devem ser combatidos severamente. Note-se que se fala em combate severo, e não em punição exacerbada. Para que a pena atinja o suposto fim de prevenção geral há a necessidade de certeza em relação à punição. E não, como se está vendo nos Tribunais Superiores, uma certeza em relação à absolvição.
O que causa estranheza é que apenas a criminalidade grosseira, aquela cometida contra o patrimônio, acaba gerando condenações. Prender uma pessoa pelo furto de um pote de manteiga é aceitável. Mas consideram-se insignificantes mercadorias descaminhadas avaliadas em R$2.470,00 (dois mil quatrocentos e setenta reais).
A verdade é que o princípio da bagatela foi concebido para fazer com que o Direito Penal fosse utilizado apenas em situações de real perigo ao bem juridicamente tutelado. Todavia, esse escopo inicial vem sendo desviado nos crime de contrabando e descaminho. Não se pode perder de vista que as condutas materialmente lesivas ao bem juridicamente tutelado devem ser punidas, como forma de promover a paz social e a segurança jurídica, finalidades precípuas do Direito enquanto ciência.