Como funcionam as Políticas de Ações Afirmativas?
O Supremo Tribunal Federal debateu extensamente as Políticas de Ações Afirmativas quando julgou a arguição de descumprimento de preceito fundamental que versava sobre reserva de vagas universitárias com base em critério étnico-racial.
É oportuno conferir:
ADPF 186/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 25 e 26.4.2012. (ADPF-186)
O Plenário julgou improcedente pedido formulado em arguição de descumprimento de preceito fundamental ajuizada, pelo Partido Democratas - DEM, contra atos da Universidade de Brasília - UnB, do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade de Brasília - Cepe e do Centro de Promoção de Eventos da Universidade de Brasília - Cespe, os quais instituíram sistema de reserva de 20% de vagas no processo de seleção para ingresso de estudantes, com base em critério étnico-racial. Preliminarmente, admitiu-se o cabimento da ação, por inexistir outro meio hábil para sanar a lesividade questionada. Apontou-se entendimento da Corte no sentido de que a subsidiariedade da via eleita deveria ser confrontada com a existência, ou não, de instrumentos processuais alternativos capazes de oferecer provimento judicial com eficácia ampla, irrestrita e imediata para solucionar o caso. Articulou-se que, diante da natureza infralegal dos atos impugnados, a ação direta de inconstitucionalidade não seria medida idônea para o enfrentamento da controvérsia, tampouco qualquer das ações que comporiam o sistema de jurisdição constitucional abstrata. De igual modo, repeliu-se alegada conexão ante eventual identidade de causa de pedir entre esta ADPF e a ADI 2197/RJ. Ocorre que as ações de índole abstrata não tratariam de fatos concretos, razão pela qual nelas não se deveria, como regra, cogitar de conexão, dependência ou prevenção relativamente a outros processos ou julgadores. Ademais, avaliou-se que o tema relativo às ações afirmativas inserir-se-ia entre os clássicos do controle de constitucionalidade, e seria conveniente que a controvérsia fosse definitivamente resolvida pelo STF, para colocar fim a polêmica que já se arrastaria, sem solução, por várias décadas nas diversas instâncias jurisdicionais do país.
No mérito, explicitou-se a abrangência da matéria. Nesse sentido, comentou-se, inicialmente, sobre o princípio constitucional da igualdade, examinado em seu duplo aspecto: formal e material. Rememorou-se o art. 5º, caput, da CF, segundo o qual ao Estado não seria dado fazer qualquer distinção entre aqueles que se encontrariam sob seu abrigo. Frisou-se, entretanto, que o legislador constituinte não se restringira apenas a proclamar solenemente a igualdade de todos diante da lei. Ele teria buscado emprestar a máxima concreção a esse importante postulado, para assegurar a igualdade material a todos os brasileiros e estrangeiros que viveriam no país, consideradas as diferenças existentes por motivos naturais, culturais, econômicos, sociais ou até mesmo acidentais. Além disso, atentaria especialmente para a desequiparação entre os distintos grupos sociais. Asseverou-se que, para efetivar a igualdade material, o Estado poderia lançar mão de políticas de cunho universalista — a abranger número indeterminado de indivíduos — mediante ações de natureza estrutural; ou de ações afirmativas — a atingir grupos sociais determinados — por meio da atribuição de certas vantagens, por tempo limitado, para permitir a suplantação de desigualdades ocasionadas por situações históricas particulares. Certificou-se que a adoção de políticas que levariam ao afastamento de perspectiva meramente formal do princípio da isonomia integraria o cerne do conceito de democracia. Anotou-se a superação de concepção estratificada da igualdade, outrora definida apenas como direito, sem que se cogitasse convertê-lo em possibilidade.
Reputou-se, entretanto, que esse desiderato somente seria alcançado por meio da denominada “justiça distributiva”, que permitiria a superação das desigualdades no mundo dos fatos, por meio de intervenção estatal que realocasse bens e oportunidades existentes na sociedade em benefício de todos. Lembrou-se que o modelo constitucional pátrio incorporara diversos mecanismos institucionais para corrigir distorções resultantes da incidência meramente formal do princípio da igualdade. Sinalizou-se que, na espécie, a aplicação desse preceito consistiria em técnica de distribuição de justiça, com o objetivo de promover a inclusão social de grupos excluídos, especialmente daqueles que, historicamente, teriam sido compelidos a viver na periferia da sociedade. Em seguida, elucidou-se o conceito de ações afirmativas, que seriam medidas especiais e concretas para assegurar o desenvolvimento ou a proteção de certos grupos, com o fito de garantir-lhes, em condições de igualdade, o pleno exercício dos direitos do homem e das liberdades fundamentais. Explanaram-se as diversas modalidades de ações afirmativas empregadas em vários países: a) a consideração do critério de raça, gênero ou outro aspecto a caracterizar certo grupo minoritário para promover sua integração social; b) o afastamento de requisitos de antiguidade para a permanência ou promoção de membros de categorias socialmente dominantes em determinados ambientes profissionais; c) a definição de distritos eleitorais para o fortalecimento de minorias; e d) o estabelecimento de cotas ou a reserva de vagas para integrantes de setores marginalizados. Ademais, expôs-se a origem histórica dessas políticas. Sublinhou-se que a Corte admitira, em outras oportunidades, a constitucionalidade delas.
Demonstrou-se que a Constituição estabeleceria que o ingresso no ensino superior seria ministrado com base nos seguintes princípios: a) igualdade de condições para acesso e permanência na escola; b) pluralismo de ideias; e c) gestão democrática do ensino público (art. 206, I, III e IV). Além disso, os níveis mais elevados do ensino, pesquisa e criação artística seriam alcançados segundo a capacidade de cada um (art. 208, V). Exprimiu-se que o constituinte teria buscado temperar o rigor da aferição do mérito dos candidatos que pretendessem acesso à universidade com o princípio da igualdade material. Assim, o mérito dos concorrentes que se encontrariam em situação de desvantagem com relação a outros, em virtude de suas condições sociais, não poderia ser aferido segundo ótica puramente linear. Mencionou-se que essas políticas não poderiam ser examinadas apenas sob o enfoque de sua compatibilidade com determinados preceitos constitucionais, isoladamente considerados, ou a partir da eventual vantagem de certos critérios sobre outros. Deveriam, ao revés, ser analisadas à luz do arcabouço principiológico sobre o qual se assentaria o Estado, desconsiderados interesses contingenciais. Dessumiu-se que critérios objetivos de seleção, empregados de forma estratificada em sociedades tradicionalmente marcadas por desigualdades interpessoais profundas, acabariam por consolidar ou acirrar distorções existentes. Nesse aspecto, os espaços de poder político e social manter-se-iam inacessíveis aos grupos marginalizados, a perpetuar a elite dirigente, e a situação seria mais grave quando a concentração de privilégios afetasse a distribuição de recursos públicos. Evidenciou-se que a legitimidade dos requisitos empregados para seleção guardaria estreita correspondência com os objetivos sociais que se buscaria atingir. Assim, o acesso às universidades públicas deveria ser ponderado com os fins do Estado Democrático de Direito. Impenderia, também, levar em conta os postulados constitucionais que norteariam o ensino público (CF, artigos 205 e 207). Assentou-se que o escopo das instituições de ensino extrapolaria a mera transmissão e produção do conhecimento em benefício de poucos que lograssem transpor seus umbrais, por partirem de pontos de largada social ou economicamente privilegiados. Seria essencial, portanto, calibrar os critérios de seleção à universidade para que se pudesse dar concreção aos objetivos maiores colimados na Constituição. Nesse sentido, as aptidões dos candidatos deveriam ser aferidas de maneira a conjugar-se seu conhecimento técnico e sua criatividade intelectual ou artística com a capacidade potencial que ostentariam para intervir nos problemas sociais. Realçou-se que essa metodologia de seleção diferenciada poderia tomar em consideração critérios étnico-raciais ou socioeconômicos, para assegurar que a comunidade acadêmica e a sociedade fossem beneficiadas pelo pluralismo de ideias, um dos fundamentos do Estado brasileiro (CF, art. 1º, V). Partir-se-ia da premissa de que o princípio da igualdade não poderia ser aplicado abstratamente, pois procederia a escolhas voltadas à concretização da justiça social, de modo a distribuir mais equitativamente os recursos públicos.
Confrontou-se a inexistência, cientificamente comprovada, do conceito biológico ou genético de raça, com a utilização do critério étnico-racial para fins de qualquer espécie de seleção de pessoas. Sublinhou-se que a Corte, nos autos do HC 82424 QO/RS (DJU de 19.3.2004), debatera o significado jurídico do termo “racismo” (CF, art. 5º, XLII) e afastara o conceito biológico, porquanto histórico-cultural, artificialmente construído para justificar a discriminação ou a dominação exercida por alguns indivíduos sobre certos grupos, maliciosamente reputados inferiores. Ressurtiu-se que, se o constituinte de 1988 qualificara de inafiançável o crime de racismo, com o escopo de impedir a discriminação negativa de determinados grupos, seria possível empregar a mesma lógica para autorizar a utilização estatal da discriminação positiva, com vistas a estimular a inclusão social de grupos excluídos. Explicou-se que, para as sociedades contemporâneas que passaram pela experiência da escravidão, repressão e preconceito, ensejadora de percepção depreciativa de raça com relação aos grupos tradicionalmente subjugados, a garantia jurídica de igualdade formal sublimaria as diferenças entre as pessoas, de modo a perpetrar as desigualdades de fato existentes. Reportou-se que o reduzido número de negros e pardos detentores de cargos ou funções de relevo na sociedade resultaria da discriminação histórica que as sucessivas gerações dos pertencentes a esses grupos teriam sofrido, ainda que de forma implícita. Os programas de ação afirmativa seriam, então, forma de compensar essa discriminação culturalmente arraigada. Nessa linha de raciocínio, destacou-se outro resultado importante dessas políticas: a criação de lideranças entre os grupos discriminados, capazes de lutar pela defesa de seus direitos, além de servirem como paradigmas de integração e ascensão social. Como resultado desse quadro, registrou-se o surgimento de programas de reconhecimento e valorização de grupos étnicos e culturais. Ressaiu-se que, hodiernamente, justiça social significaria distinguir, reconhecer e incorporar à sociedade valores culturais diversificados. Esse modo de pensar revelaria a insuficiência da utilização exclusiva do critério social ou de baixa renda para promover a integração de grupos marginalizados, e impenderia incorporar-se nas ações afirmativas considerações de ordem étnica e racial. Salientou-se o seu papel simbólico e psicológico, em contrapartida à histórica discriminação de negros e pardos, que teria gerado, ao longo do tempo, a perpetuação de consciência de inferioridade e de conformidade com a falta de perspectiva, tanto sobre os segregados como para os que contribuiriam para sua exclusão.
Discorreu-se sobre o papel integrador da universidade e os benefícios das ações afirmativas, que atingiriam não apenas o estudante que ingressara no sistema por intermédio das reservas de vagas, como também todo o meio acadêmico, dada a oportunidade de conviver com o diferente. Acrescentou-se que esse ambiente seria ideal para a desmistificação dos preconceitos sociais e para a construção de consciência coletiva plural e culturalmente heterogênea. A corroborar essas assertivas, assinalaram-se diversas ações afirmativas desenvolvidas a respeito do tema nos EUA. Examinou-se, também, a adequação dos instrumentos utilizados para a efetivação das políticas de ação afirmativa com a Constituição. Reconheceu-se que as universidades adotariam duas formas distintas de identificação do componente étnico-racial: autoidentificação e heteroidentificação. Declarou-se que ambos os sistemas, separados ou combinados, desde que jamais deixassem de respeitar a dignidade pessoal dos candidatos, seriam aceitáveis pelo texto constitucional. Por sua vez, no que toca à reserva de vagas ou ao estabelecimento de cotas, entendeu-se que a primeira não seria estranha à Constituição, nos termos do art. 37, VIII. Afirmou-se, de igual maneira, que as políticas de ação afirmativa não configurariam meras concessões do Estado, mas deveres extraídos dos princípios constitucionais. Assim, as cotas encontrariam amparo na Constituição.
Ressaltou-se a natureza transitória dos programas de ação afirmativa, já que as desigualdades entre brancos e negros decorreriam de séculos de dominação econômica, política e social dos primeiros sobre os segundos. Dessa forma, na medida em que essas distorções históricas fossem corrigidas, não haveria razão para a subsistência dos programas de ingresso nas universidades públicas. Se eles ainda assim permanecessem, poderiam converter-se em benesses permanentes, em detrimento da coletividade e da democracia. Consignou-se que, no caso da UnB, o critério da temporariedade fora cumprido, pois o programa de ações afirmativas lá instituído estabelecera a necessidade de sua reavaliação após o transcurso de dez anos. Por fim, no que concerne à proporcionalidade entre os meios e os fins colimados nessas políticas, considerou-se que a reserva de 20% das vagas, na UnB, para estudantes negros, e de um pequeno número delas para índios, pelo prazo de citado, constituiria providência adequada e proporcional a atingir os mencionados desideratos.
O Min. Luiz Fux ratificou que as ações afirmativas seriam políticas eficazes de distribuição e de reconhecimento, porquanto destinadas a fornecer espécies limitadas de tratamento preferencial para pessoas de certos grupos raciais, étnicos e sociais, que tivessem sido vítimas de discriminação de longa data. Clarificou que a igualdade não se efetivaria apenas com a vedação da discriminação, senão com a igualdade para além da formal, ou seja, a isonomia real como ultima ratio, a atender aos reclamos do não preconceito e da proibição ao racismo como cláusulas pétreas constitucionais. Aquilatou que o direito à diferença reivindicaria implementação ética da igualdade material, escopo que não se alcançaria tão somente com promessas legais abstratas, as quais não se coadunariam com a moderna percepção da efetividade das normas constitucionais. Neste passo, qualificou as cotas em questão como instrumento de transformação social. Preconizou que a construção de sociedade justa e solidária imporia a toda a coletividade a reparação de danos pretéritos, a adimplir obrigações morais e jurídicas. Aduziu que todos os objetivos do art. 3º da CF, que prometeriam a construção de sociedade justa e solidária, traduzir-se-iam na mudança para se alcançar a realização do valor supremo da igualdade, a fundamentar o Estado Democrático de Direito constituído. Reputou paradoxal a dificuldade de alunos de colégios públicos chegarem às universidades públicas, as quais seriam compostas, na maioria, por estudantes egressos de escolas particulares. Acresceu que a política das cotas atenderia, à saciedade, o princípio da proporcionalidade, na medida em que erigiria a classificação racial benigna, a qual não se compararia com discriminações. Explanou que aquela visaria fins sociais louváveis, ao passo que as últimas teriam cunho odioso e segregacionista.
Assentou que as políticas públicas implementadas pelas universidades em nada violariam o princípio da reserva legal. Elas não surgiriam de vácuo, mas teriam fulcro na Constituição, na legislação federal e em atos administrativos (atos normativos e secundários). Nesse sentido, citou normas criadas com essa finalidade: a) a Lei 9.394/96, que estabelece Diretrizes e Bases para a Educação; b) a Lei 10.172/2001, que aprova o Plano Nacional de Educação, a qual teria disposto que o ensino superior deveria criar políticas que facilitassem às minorias vítimas de discriminação o acesso à educação superior por meio de programas de compensação de deficiências de sua formação escolar anterior; c) a Lei 10.558/2002, que estatui o Programa de Diversidade na Universidade, ao definir como objetivo implementar e avaliar estratégias para promoção do acesso ao ensino superior; d) a Lei 10.678/2003, que cria a Secretaria Especial de Políticas de Promoção de Igualdade Racial; e) a Lei 12.288/2010, que institui o Ordenamento da Igualdade Racial, ao estipular que, no âmbito do direito à educação, a população afrodescendente deverá receber do Poder Público programas de ação afirmativa; e f) a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, internalizada no ordenamento pátrio pelo Decreto 65.810/69. Por fim, relembrou orientação da Corte no sentido de que o STF não defenderia essa ou aquela raça, mas a raça humana.
A Min. Rosa Weber acrescentou que igualdade formal seria presumida, a desprezar processos sociais concretos de formação de dessemelhanças. Avaliou que as possibilidades de ação, escolha de vida, visões de mundo, chances econômicas, manifestações individuais ou coletivas específicas seriam muito mais restritas para aqueles que, sob a presunção da igualdade, não teriam suas condições particulares consideradas. Nesse caso, assentou necessárias intervenções do Estado por meio de ações afirmativas, a fim de que se corrigisse a desigualdade concreta, de modo que a igualdade formal voltasse a ter seu papel benéfico. Ademais, ponderou que, ainda que se admitisse a tese de que a quase ausência de negros no ensino superior e nos postos mais altos do mercado de trabalho e da vida social brasileira não se daria em razão de recusa consciente pela cor, a disparidade social seria flagrante. Colacionou o dado de que, dentre a parcela de 10% da população brasileira mais pobre, 75% seria composta por pretos e pardos. Quanto ao princípio da proporcionalidade, aduziu que o modelo não o feriria, haja vista que o fato de certa política pública correr o risco de ser ineficaz não indicaria motivo para considerá-la inadequada prima facie. Além disso, as universidades teriam conseguido realizar de forma convincente seus objetivos com as cotas, de sorte a aumentar o contingente de negros na vida acadêmica, mantê-los nos seus cursos, capacitá-los para disputarem as melhores chances referentes às suas escolhas de vida.
Não vislumbrou violação ao subprincípio da necessidade, porquanto a política de cotas seria imediata e temporária, bem como tenderia a desaparecer à medida que as discrepâncias sociais fossem diminuídas. Lembrou não haver ofensa a qualquer direito subjetivo à ocupação de vagas do ensino superior pelo mérito aferido na classificação do vestibular pura e simplesmente. Isso porque a universalização do ensino diria respeito ao fundamental e ao médio. Explicou que, se assim não fosse, não faria sentido condicionar meritoriamente o acesso ao nível superior, pelo que não haveria direito subjetivo a cursar faculdade, muito menos pública (CF, art. 208, V). Ressaltou, então, existir espaço livre para realização de políticas públicas de inclusão social que não violassem os princípios básicos de cunho individual e coletivo, bem como aqueles que tivessem liame com o ensino superior. Destacou inexistir afronta a critério de mérito, porque os concorrentes à vaga de cotista submeter-se-iam a nota de corte. Além disso, as vagas remanescentes poderiam ser redirecionadas para os demais candidatos aprovados e não classificados. Realçou que as cotas possuiriam 3 tarefas: a) acesso ao ensino superior do grupo representativo não encontrado de maneira significativa; b) compreensão melhor da realidade brasileira e das suas condições de mudança; e c) transformação dos meios sociais em que inseridas as universidades, com fito de propiciar mais chances a quem essa realidade fora negada.
A Min. Cármen Lúcia anotou que a Constituição partiria da igualdade estática para o processo dinâmico da igualação. Enfatizou a responsabilidade social e estatal de que o princípio da igualdade dinâmica fosse cumprido objetivamente. Exprimiu que o sentimento de inferioridade em razão de falta de oportunidades comuns não poderia ser ignorado socialmente, visto que fragilizaria grande parte de pessoas desprovidas de autorrespeito e dignidade. Aludiu que as ações afirmativas seriam etapa diante de quadro em que a igualdade e a liberdade de ser diferente ainda não teriam ocorrido de forma natural. Neste contexto, consignou que a função social da universidade seria propiciar os valores necessários aos menos aquinhoados historicamente com oportunidades, a fim de que os princípios constitucionais fossem efetivados. Arrematou que as políticas compensatórias deveriam ser acompanhadas de outras providências com a finalidade de não reforçar o preconceito.
O Min Joaquim Barbosa definiu a discriminação como componente indissociável do relacionamento entre os seres humanos. Salientou estar em jogo, em certa medida, competição, espectro que germinaria em todas as sociedades. Nestes termos, estatuiu que, quanto mais intensa a discriminação e mais poderosos os mecanismos inerciais a impedir o seu combate, mais ampla a clivagem entre o discriminador e o discriminado. Esclareceu que, aos esforços de uns, em prol da concretização da igualdade, se contraporiam os interesses de outros no status quo. Seria natural que as ações afirmativas sofressem os influxos das forças antagônicas e que atraíssem considerável resistência, sobretudo da parte daqueles que, historicamente, se beneficiaram da discriminação dos grupos minoritários. No ponto, frisou que as ações afirmativas definir-se-iam como políticas públicas voltadas à concretização do princípio da igualdade material e da neutralização dos efeitos perversos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Apontou que a igualdade deixaria de ser princípio jurídico a ser respeitado por todos e passaria a se consubstanciar objetivo constitucional a ser alcançado pelo Estado e pela sociedade. Ressaltou haver, no direito comparado, vários casos de ação afirmativa desenhadas pelo Poder Judiciário — naquelas circunstâncias em que a ele não restaria outra alternativa senão determinar medidas cabíveis. Aduziu que, impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados e até mesmo por entidades privadas, essas providências visariam combater não apenas discriminação flagrante, mas também aquela de fato, de fundo cultural, estrutural, como a brasileira, arraigada de tal forma na sociedade que as pessoas sequer a perceberiam. Afirmou que constituiriam a mais eloquente manifestação da ideia de Estado diligente, daquele que tomaria iniciativa, que não acreditaria na força invisível do mercado. Reputou que se trataria de mecanismo sócio-jurídico destinado a viabilizar, primordialmente, harmonia e paz social — que, mais cedo ou mais tarde, ver-se-ia seriamente perturbada quando um grupo social expressivo estivesse eternamente à margem do processo produtivo e dos benefícios do progresso. Registrou que essas ações objetivariam robustecer o desenvolvimento econômico do país, à proporção que a universalização do acesso à educação e ao mercado econômico teria, como consequência inexorável, o crescimento macroeconômico, a ampliação generalizada dos negócios, ou seja, o crescimento do país como um todo. Sobrelevou que a história universal não registraria, na era contemporânea, nenhum exemplo de nação que tivesse se erguido, de condição periférica à de potência econômica e política, digna de respeito, na cena internacional, quando mantenedora, no plano doméstico, de política de exclusão, fosse ela aberta ou dissimulada, legal ou meramente estrutural ou histórica, em relação a parcela expressiva de sua população.
O Min. Cezar Peluso destacou o déficit educacional e cultural da etnia negra, em virtude das graves e conhecidas barreiras institucionais de seu acesso a esses bens. Sobressaiu que o acesso à educação seria meio necessário e indispensável para a fruição de desenvolvimento social e econômico. Frisou o dever ético e jurídico de o Estado e a sociedade promoverem a solidariedade e o bem de todos sem preconceito racial e erradicarem a marginalização. Julgou que a política de ação afirmativa em comento seria experimento realizado pelo Estado, cujo sucesso poderia, ao longo do tempo, ser controlado e aperfeiçoado. Afastou o argumento no sentido de que as cotas seriam discriminatórias, visto que ignoraria as próprias discriminações, formuladas pela Constituição, na tutela desses grupos atingidos por alguma espécie de vulnerabilidade sócio-política. Ademais, rechaçou a tese de que, após a obtenção do diploma, seria reproduzida a discriminação em desfavor dos negros. Afirmou que o diploma garantiria o patrimônio educacional dessas pessoas e que essa vantagem compensaria a possibilidade de alguma reprovação pós-universidade. Repudiou, de igual modo, a ausência de distinção por etnia, pois a discriminação negativa seria fenômeno humano, ligado às diferenças fenotípicas, e irracional, como todo preconceito. Quanto à questão do mérito pessoal, supostamente deixado de lado, disse que essa alegação ignoraria os obstáculos historicamente opostos aos esforços dos grupos marginalizados e cuja superação não dependeria das vítimas da marginalização, mas de terceiros. Salientou que o merecimento seria critério justo, porém apenas em relação aos candidatos que tivessem oportunidades idênticas ou assemelhadas. No que concerne ao suposto incentivo ao racismo que as cotas proporcionariam, lembrou que a experiência, até o momento, demonstraria a inocorrência desse fenômeno ou a sua manifestação em escala irrelevante. Por fim, observou que o critério racial deveria ser aliado ao socioeconômico. Apontou, também, que seria contraditório considerar elementos genotípicos — se fosse esse o critério adotado pela comissão encarregada de apurar os destinatários das cotas — para permitir a entrada na universidade de quem, pelas características fenotípicas, nunca fora discriminado.
O Min. Gilmar Mendes consignou que o projeto da UnB seria pioneiro dentre as universidades federais e, por isso, suscetível de questionamentos e aperfeiçoamentos. Destacou que, no modelo da mencionada universidade, ter-se-ia utilizado de critério exclusivamente racial, ausente em relação ao Prouni, por exemplo, em que, a despeito de se embasar na questão da raça, também teria em conta a hipossuficiência do estudante. Desse modo, embora a forma adotada por aquela instituição de ensino fosse autodesignativa por parte do candidato, ter-se-ia criado verdadeiro tribunal racial, longe de ser infalível e suscetível de distorções eventualmente involuntárias, por operar com quase nenhuma transparência. Enfatizou que a modalidade escolhida teria a temporalidade como sua característica e deveria vir seguida de um relatório — um acompanhamento pari passu do resultado, ou seja, qual seria o efeito da política pública em relação ao objetivo que se pretenderia. A diminuta presença de negros nas universidades decorreria do contexto histórico escravocrata brasileiro e da má qualidade das escolas públicas, porém, não se poderia dizer que a fórmula estaria na melhoria das escolas públicas, sob pena de se comprometer gerações que estariam na fase de transição desses estabelecimentos de ensino para o vestibular. Ressurtiu que, nesse compasso, a população negra, historicamente mais débil economicamente, não lograria condições de pagar a perversidade do sistema, que se faria mais cruel ao não permitir discussão sobre alguma forma de financiamento. Ressaltou ser notória a presença, nas universidades federais, daqueles que, em princípio, passaram pela escola privada. Concluiu necessária a revisão do parâmetro estabelecido.
O Min. Marco Aurélio entendeu harmônica com a Constituição e com os direitos fundamentais nela previstos a adoção temporária e proporcional do sistema de cotas para ingresso em universidades públicas, considerados brancos e negros. Extraiu, do art. 3º da CF, base suficiente para acolher ações afirmativas, maneira de corrigir desigualdades a favor dos discriminados. Esclareceu que os objetivos fundamentais da República consubstanciariam posturas dinâmicas, as quais implicariam mudança de óptica. Realçou que os princípios constitucionais teriam tríplice função: a) a informativa, junto ao legislador ordinário; b) a normativa, para a sociedade como um todo; e c) a interpretativa, tendo em conta os operadores do Direito. Destacou que nem a passagem do tempo, nem o valor “segurança jurídica” suplantariam a ênfase dada pelo legislador constituinte ao crime racial (CF, art. 5º, XLII). Anotou que as normas proibitivas não seriam suficientes para afastar a discriminação do cenário social e, no ponto, fez apelo ao Congresso Nacional para que houvesse normas integrativas. Enumerou como exemplos de ação afirmativa na Constituição: a) a proteção de mercado quanto à mulher (art. 7º, XX); b) a reserva de vaga nos concursos públicos para deficientes (art. 37, III); e c) o tratamento preferencial para empresas de pequeno porte e à criança e ao adolescente (artigos 170 e 227, respectivamente). Assim, revelou que a prática das ações afirmativas pelas universidades públicas brasileiras denotaria possibilidade latente nos princípios e regras constitucionais aplicáveis à matéria. Avaliou que a implementação por deliberação administrativa decorreria do princípio da supremacia da Carta Federal e também da previsão, presente no artigo 207, caput, dela constante, da autonomia universitária. Aduziu que o Supremo, em visão evolutiva, já teria reconhecido a possibilidade de incidência direta da Constituição nas relações calcadas pelo direito administrativo.
Mencionou, ainda, que a definição dos critérios de admissão no vestibular disciplinar-se-ia pelo edital, de acordo com os artigos 44, II, e parágrafo único, e 53, caput, da Lei 9.394/97. Assinalou que a adoção de políticas de ação afirmativa em favor de negros e de outras minorias no Brasil não teria gerado o denominado “Estado racializado”, como sustentara o arguente. A respeito, observou que seriam mais de dez anos da prática sem registro de qualquer episódio sério de tensão ou conflito racial no Brasil que pudesse ser associado a essas medidas. Versou que o art. 208, V, da CF deveria ser interpretado de modo harmônico com os demais preceitos constitucionais, de sorte que a cláusula “segundo a capacidade de cada um” somente poderia referir-se à igualdade plena, tendo em vista a vida pregressa e as oportunidades que a sociedade oferecera às pessoas. No ponto, ressaltou que a meritocracia sem “igualdade de pontos de partida” seria apenas forma velada de aristocracia. Apesar de reputar relevante a alegação de que o sistema de verificação de cotas conduziria à prática de arbitrariedades pelas comissões de avaliação, rechaçou-a. Explicou que essa assertiva não consubstanciaria argumento definitivo contra a adoção da política de cotas. Ocorre que, na aplicação do sistema, as distorções poderiam acontecer, mas se deveria presumir que as autoridades públicas pautar-se-iam por critérios razoavelmente objetivos. Ademais, registrou que descaberia supor o extraordinário, a fraude, a má-fé, para tentar deslegitimar-se a política. Alfim, sobrelevou que somente existiria a supremacia da Constituição quando, à luz desse diploma, vingar-se a igualdade. Concluiu que a ação afirmativa evidenciaria o conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica.
Em acréscimo, o Min. Celso de Mello assinalou que o presente tema deveria ser apreciado não apenas sob a estrita dimensão jurídico-constitucional, mas, também, sob perspectiva moral, pois o racismo e as práticas discriminatórias representariam grave questão de índole moral com que defrontada qualquer sociedade, notadamente, as livres e fundadas em bases democráticas. Considerou que o ato adversado seria harmônico com o texto constitucional e com os compromissos que o Brasil assumira na esfera internacional, a exemplo da Conferência de Durban; da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; da Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana; dos Pactos Internacionais sobre os Direitos Civis, Políticos Econômicos, Sociais e Culturais; da Declaração e do Programa da Ação de Viena. Destacou que os deveres irrenunciáveis emanados desses instrumentos internacionais incidiriam de modo pleno sobre o Estado brasileiro e impor-lhe-iam execução responsável em favor da defesa e da proteção da integridade de todas as pessoas, em especial, dos grupos vulneráveis que sofreriam a perversidade de injustas discriminações em virtude de sua origem étnico-racial. No ponto, registrou que o conceito de minoria não seria apenas numérico, mas, ao revés, apoiar-se-ia na noção de vulnerabilidade, como nas discriminações de gênero.
Afirmou, outrossim, que o desafio do país seria a efetivação concreta, no plano das realizações materiais, daqueles deveres internacionalmente assumidos. Por outro lado, frisou que, pelo exercício da função contramajoritária — decorrente, muitas vezes, da prática moderada de ativismo judicial —, dar-se-ia consequência à própria noção material de democracia constitucional. Consignou que as políticas públicas poderiam ser pautadas por outros meios que não necessariamente pelo modelo institucional de ações afirmativas, caracterizadas como instrumentos de implementação de mecanismos compensatórios — e temporários — destinados a dar sentido aos próprios objetivos de realização plena da igualdade material. Por fim, o Min. Ayres Britto, Presidente, repisou a preocupação do texto constitucional, em seu preâmbulo, com o bem estar e, assim, com distribuição de riqueza, patrimônio e renda. Reputou que o princípio da igualdade teria sido criado especialmente para os desfavorecidos e que a Constituição proibira o preconceito. Como forma de instrumentalizar essa vedação, fomentara as ações afirmativas, a exigir do Estado o dispêndio de recursos para encurtar distâncias sociais e promover os desfavorecidos.
Os conteúdos do site podem ser citados na íntegra ou parcialmente, desde que seja citado o nome do autor (quando disponível) e incluído um link para o site www.jurisway.org.br.
Curta ou Compartilhe com os amigos: